Não deixar a vida fora da escola

Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia

Título do artigo: Não deixar a vida fora da escola

Autora: Maria José Araújo

Filiação institucional: Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto

E-mail: mjosearaujo@gmail.com

Palavras-chave: Crianças, expressões, escola.

O ano lectivo que estamos agora a começar é mais um ano em que a nossa sociedade propõe às crianças – que frequentam o lº ciclo do ensino básico-, uma educação dirigida principalmente à sua razão, em detrimento da sua afectividade e de toda a riqueza das expressões que são garantia de um desenvolvimento mais completo do conjunto das faculdades humanas. Expressão é a própria vida, dado que toda a natureza humana pode ser considerada expressiva. Para Arno Stern (1), o termo qualifica muitas coisas diferentes e, de uma maneira geral, os educadores querem explicar tudo o que acontece com a criança, porque lhes custa acreditar na acção educativa libertadora que reabilita sem passar por uma interpretação, sem passar por um diagnóstico que conduza a receitas pedagógicas; mas na actividade criativa há coisas que não se explicam. As crianças têm normalmente necessidade da expressão plástica, de desenhar, para enunciarem o que não conseguem confiar à expressão verbal e, se admitirmos este facto como princípio justificativo da sua actividade criadora, a expressão “livre” nunca será colocada em causa. “Compreender a arte infantil é saber porque se exprime a criança, como se exprime e o que exprime” (Stern, s/d: 6).

Na escola, a actividade expressiva é primordial, ajuda ao equilíbrio da personalidade e proporciona bem-estar, como podemos comprovar quando deixamos as crianças exprimirem-se em liberdade através da pintura, do desenho ou mesmo quando as observamos chegar ao recreio depois de estarem umas horas sentadas e quietas na sala de aula com o professor a fazer apelo à sua concentração, à sua memória, ao seu raciocínio, moderando todos os seus impulsos de exteriorização e movimento. A aprendizagem das expressões artísticas é um benefício para as crianças, pois constitui a possibilidade de exprimirem em liberdade o seu potencial criativo pessoal, as suas emoções, através de linguagens diferenciadas: a linguagem musical, corporal, dramática, plástica, verbal e escrita.

Nas instituições escolares em que as crianças pertencem a contextos menos favorecidos, social e culturalmente, as actividades de enriquecimento curricular aparecem como oferta cultural para contrabalançar as dificuldades da escola. Uma espécie de remedeio que não tem suscitado uma reflexão crítica sistemática e consequente e que se prende essencialmente com a falta de investimento sério na área das expressões artísticas e com algum desrespeito pelas crianças.

A escolarização tem tido como prioridade o ensino da leitura, centrada na produção escrita e na comunicação oral, e a aquisição de competências básicas na matemática. As áreas de expressão e educação artística ficam relegadas para o trabalho nos horários pós-escolares, desenvolvem-se sobretudo fora do tempo escolar nas AEC (actividades de enriquecimento curricular) ou através das iniciativas culturais privadas que se multiplicam sem um plano sistemático, reflexivo, que permita uma organização em função dos interesses das crianças. Muitas vezes, esses apoios evidenciam um esforço de propagação de uma cultura para educar e nem sempre a possibilidade de acesso a experiências significativas que propiciem o desenvolvimento expressivo das crianças.

A educação e expressão artística não podem ser reféns da fórmula escolar, pelo que o debate sobre o lugar das expressões é essencial. A expressão “ensino artístico” é muitas vezes usada somente para designar o ensino das artes visuais. Trata-se de uma fórmula global para descrever as artes manuais. No ensino básico, a “expressão plástica” e a “educação visual” são basicamente trabalhos manuais (artes manuais), e muitas vezes dá-se valor a estas áreas apenas por referência a outras. É o caso dos estudos sobre o ambiente ou da educação cívica, em que o desenho e a pintura aparecem sobretudo como ilustração e não como expressão. A música e as artes plásticas, muitas vezes relegadas para segundo plano no conjunto das disciplinas escolares, são imprescindíveis na aprendizagem escolar, pois não se trata de ensinar artes mas de educar pela arte. O que a arte ensina e propõe é muito mais do que conhecimento, é a possibilidade de interrogação constante, abertura aos sentidos, desafio à inteligência e à sensibilidade, ou seja lições de vida. Mesmo considerando que desde há mais de um século se sabe que a expressão musical e plástica devem ser obrigatórias na escola, este facto não tem sido suficiente para garantir e legitimar o seu valor e imprescindibilidade. Pais e professores consideram, na maior parte das vezes, estas áreas de expressão como um parêntesis recreativo, ligado e ao serviço de disciplinas “nobres”, ou um “enclave” enriquecedor, mas nem sempre essencial, o que tem justificado e legitimado os argumentos do poder central. Os estudantes por seu lado, consideram-nas quase sempre como as suas áreas favoritas. Aliás, basta estar atento às crianças e à forma como constantemente tentam exprimir nas capas dos cadernos, nas danças de corredor, no brincar e cantarolar ….

A descoberta da correspondência entre um gesto e uma intenção, a beleza de um movimento, de um olhar, de uma cor, de um som, de uma sensação táctil, entre outras formas de percepção das emoções e dos sentimentos que as acompanham, é essencial para o desenvolvimento da inteligência na sua globalidade. O trabalho artístico e a prática cultural canalizam energias que permitem a descoberta dos limites e ajudam na procura de aquisição de disciplina pessoal. Cada experiência vencida modifica totalmente a aquisição de todas as outras experiências e contribui para a riqueza de cada criança, uma vez que é a experiência que está na origem do pensamento e não o contrário. A experiência de criação partilha múltiplas riquezas, é uma experiência fundadora para qualquer criança, para qualquer cidadão.

Não se preocupar com a educação e expressão artística no ensino básico é desconhecer tudo o que se sabe sobre o desenvolvimento da inteligência e é mostrar um desconhecimento profundo sobre a infância. Mais ainda, a tomada de consciência pelos mais jovens da diversidade e riqueza de atitudes culturais contribui de maneira decisiva para o reconhecimento das diferenças culturais e sociais e ainda para o respeito pela expressão das “minorias”. As artes contribuem para a discussão sobre a vida e podem ajudar a criar uma escola de tolerância, de respeito e bem-estar, na medida em que as regras das artes são as regras da vida.

Nota

(1)               Stern, Arno (s/d). Uma Nova Compreensão da Arte Infantil. Lisboa: Livros Horizonte.

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