Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida
Título do artigo: Formas e conteúdos das famílias, baixas natalidades e PMA
Autor: Duarte Vilar
Filiação institucional: Sociólogo, Director Executivo da APF, Investigador do CLISSIS
E-mail: duartevilar@apf.pt
Palavras-chave: Famílias, Ideologias, PMA
Neste último mês, dois factos relacionados com as questões da família chegaram à informação e debate públicos: em primeiro lugar, a divulgação de dados que fazem prever que 2011 tenha sido o ano com menos nascimentos desde que existem estatísticas demográficas; o segundo facto foi o debate parlamentar – e publico – sobre as questões da procriação medicamente assistida, que trouxeram à discussão a diversidade de posições existentes em matérias como a família e a parentalidade.
Mas antes de entrar no assunto, faço já uma declaração de interesses: nasci e cresci numa família com o meu pai e a minha mãe biológicos e com um bom ambiente familiar, que não deixou, por isso, de ser marcado pelos conflitos entre gerações típicos de quem teve a sua adolescência nos anos 60 e princípios de 70; quando olho para trás direi, sem dúvidas, que tive uma infância e uma juventude feliz, e que a minha família me traz essencialmente boas recordações; talvez por isso partilho com muita gente a ideia de que as famílias são contextos fundamentais no nosso crescimento, para o bem e para o mal, promotoras de apoio, troca de afectos positivos e protecção, mas que também podem ser promotoras de insegurança, frustração e de violências várias; e, por isso, importa apoiar as famílias no sentido de contribuir para que elas sejam ambientes saudáveis de vida e crescimento.
As famílias, enquanto grupos sociais, têm sido abordadas pela sociologia e pela história em diferentes perspectivas: desde os factores económicos que lhes estão na base, às suas diferentes morfologias, às suas funções sociais e emocionais, às diferentes dinâmicas familiares, às mudanças históricas que as tocaram tais como o sentimento de privacidade, a emergência do sentimento da infância ou as mudanças na condição social das mulheres.
As questões da natalidade e parentalidade e, neste caso, da baixíssima natalidade em Portugal, prendem-se obviamente com os ambientes sociais e económicos e também, naturalmente, com as representações e expectativas que mulheres e homens têm sobre as suas vidas, e sobre o papel que os filhos podem ter nesses contextos.
Os números de 2011 agora conhecidos apenas reflectem de forma extrema, as tendências demográficas nos últimos anos. É evidente que a incerteza face ao futuro próximo, o agravamento brutal do desemprego, a baixa do poder de compra a que temos vindo a assistir, são motivos mais do que suficientes para explicar a situação.
Mas, para além da conjuntura, os números espelham o que é hoje a parentalidade (até porque este é mais um período de crise e incerteza, como muitos outros que a humanidade já vive, e que não se reflectiram em taxas de natalidade e fecundidade tão baixas).
Em primeiro lugar, a parentalidade é, hoje, uma escolha e não um resultado da tradição. Não tem tanto a ver com o planeamento das gravidezes (muitas são inesperadas) mas tem a ver, sobretudo, com o desejo de maternidade e de paternidade (que se reflectem na aceitação da gravidez).
Esta escolha é baseada em critérios de qualidade de vida, quer da vida dos filhos, quer da vida do pais e das mães – sobretudo da mãe – quer da vida do agregado familiar. E não só falamos de qualidade de vida sob o ponto de vista das condições materiais (boa habitação, boa alimentação, boa escola, boa saúde), mas também a qualidade de vida emocional, enquanto possibilidade de realizar projectos e de ter tempo na vida.
Mas este conceito de família reduzida a um ou dois filhos não pode ser entendido somente como um produto de factores económicos, mas também é a representação mais generalizada e aceite do que é, actualmente, a dimensão de uma família.
Resumindo, a parentalidade é, hoje, uma escolha exigente e, num país periférico, como o nosso, e em que as famílias têm, em média, baixos rendimentos muito pouco é deixado ao acaso. É pois natural que, num clima de incerteza e de retracção, a fecundidade seja mais do que nunca controlada, e que a natalidade diminua para níveis muito baixos.
Segundo tema: o debate sobre a PMA e a recusa da maioria política (incluindo nesta o PS) de estender esta possibilidade a mulheres sozinhas ou numa relação homossexual (que, aliás, é coerente com a dificuldade de aceitação da possibilidade de adopção a casais homossexuais).
Em minha opinião, o principal argumento contra aquela possibilidade radica no facto de se considerar a família completa e biológica como o único contexto desejável para o nascimento e o crescimento de uma criança. Os argumentos, depois, dividem-se nos de natureza religiosa e ideológica (do género, “Família” há só uma, a heterossexual e biológica e mais nenhuma) ou em argumentos de natureza técnica que presumem defender os direitos das crianças. Seja como for, o que está na base é a crença da “família ideal” a que nos referimos.
E, também aqui, as ciências sociais, nomeadamente a história e a sociologia da família e a psicologia podem e devem trazer alguns contributos ao debate.
Ora, em primeiro lugar, o que tais argumentos ignoram, ou esquecem é que, como referem os estudos históricos sobre as famílias, se de facto uma boa parte da humanidade nasceu e cresceu em famílias que designaremos tradicionais (sem que o tradicional traduza aqui, minimamente, qualquer juízo de valor), outra boa parte da humanidade nasceu e cresceu em famílias onde pelos menos um, senão os dois, pais biológicos estavam ausentes, por emigração, divórcio ou separação, morte prematura e abandonos por outras causas diversas. E não há provas históricas que quem nasceu nas primeiras tenha sido mais feliz do que quem nasceu nas segundas.
(E nem vou falar muito dos disparates que se dizem a este propósito, sobre a necessidade de termos na família um homem (muito masculino) e uma mulher (muito feminina) para sermos capazes de construir a nossa identidade de género… porque eles geralmente ignoram os caminhos complexos e riquíssimos dos mecanismos das aprendizagens e das interacções humanas).
Por outro lado, uma boa parte da humanidade nasceu e cresceu em famílias com pai e mãe biológicos, mas onde a qualidade das relações familiares era, também por razões diversas – pobreza, alcoolismo, violência de género, más relações conjugais ou parentais – eram totalmente adversas a um ambiente saudável. E, no entanto, essa boa parte da humanidade cresceu e viveu, mais ou menos feliz, mais ou menos infeliz, com melhor ou pior saúde mental, reproduzindo ou não os ambientes das suas famílias de origem.
Porque, como os psicólogos bem o demonstraram, nomeadamente com Bowlby e as suas teorias de vinculação, é que, no nosso crescimento, o que mais conta são, de facto, os laços de protecção e vinculação afectivas que nutrem essa básica necessidade humana, de sermos desejados e amados por alguém.
Ou seja, muito mais importante que as morfologias familiares, são os seus conteúdos relacionais e emocionais.
Ora, neste momento, em que a PMA veio alterar profundamente as possibilidades biológicas da parentalidade, só pode ser um bem que esta possa ser alargada a quem desejar ser pai ou mãe.