No abismo da procura de uma “resposta milagre” para a(s) família(s)

Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida

Título do artigo: No abismo da procura de uma “resposta milagre” para a(s) família(s)

Autora: Maria Filomena Ribeiro da Fonseca Gaspar

Filiação institucional: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra; Grupo de Investigação Família, Saúde e Justiça

E-mail: ninigaspar@fpce.uc.pt

Palavras-chave: família(s), parentalidade, parentalidade positiva

As formas de ser família(s) mudaram? Sim. Não mudaram para pior, nem para melhor. Simplesmente, mudaram.

A polarização do debate entre mudança para pior ou para melhor é uma das maiores barreiras à nossa capacidade de re(pensarmos) a(s) família(s) e foi designada, apenas para dar um exemplo, de debate entre o “pessimismo e o otimismo” por David Blankenhorn (1990) [1] e, vinte anos depois, Fiona Williams (2010) [2] recorre à mesma polarização para discutir o que é hoje ser família(s).

Neste texto é nosso objetivo contribuir para re(pensarmos) a(s) família(s), neste início de século e essencialmente no contexto europeu, começando pela mudança que mais a(s) marcou: o fim do modelo social de “homem-ganha-pão” para o de “trabalhador adulto”, com a consequente abertura do mercado de trabalho à mulher, naquilo que gerou de desafios ao exercício da função parental e de outras funções ligadas ao “cuidar”.

A mudança de um modelo social de “homem provedor” para “adulto provedor” foi talvez uma das mudanças sociais que mais nos marcaram como sociedades e indivíduos.

O “pessimista” culpará esta mudança por um conjunto de males que nos afligem atualmente:

– o individualismo egoísta, com a ambição pessoal das mulheres a sobrepor-se às suas funções tradicionais de cuidar das gerações mais novas (filhos/as que têm de ser cuidados por estruturas sociais) e também das mais velhas (com a consequente solidão dos/as idosos/as) e das comunidades (com o desfazer das vizinhanças e comunidades cuidadoras).

O “otimista” procurará nesta mudança aquilo que trouxe de potencial positivo para os indivíduos que atualmente vivem em agrupamentos sociais que designamos de família:

– as mulheres, libertas pelo salário, deixam de estar dependentes, quer dos homens com quem vivem ou se casam, quer da sua família de origem: esta mudança dá-lhes o direito à escolha, de fazerem o que entendem que “devem” e não o que “têm de” fazer. Ficam libertas do “dever e obrigação” e estão ligadas à(s) sua(s) família(s) por laços de afeto.

A “individualidade” (cada membro da família é um indivíduo com direitos e deveres), mudança gerada, pelo menos em parte, pela mudança anterior, marca também as relações na(s) família(s).

O “pessimista” verá nesta mudança a origem do individualismo egoísta, de homens e de mulheres que colocam a sua procura de felicidade acima das suas funções de cuidadores parentais. Ao homem falta-lhe o “compromisso moral” de prover o bem-estar económico da sua família. A mulher coloca o sucesso profissional acima do bem-estar emocional da sua família, acarretando esta escolha a redução no número de filhos e o adiar da maternidade, senão mesmo na sua recusa.

A perda de compromisso com o outro adulto, que com ele/ela forma um dos tipos de família das nossas sociedades atuais, conduz ela mesma a um dos outros “males” que o “pessimista” identificará: o aumento da co-habitação (indiferença pelo compromisso), do divórcio ou separação (indiferença pelo outro, seja esse outro par ou filho/a) e da dependência de subsídios. A felicidade é igualada a sucesso económico e profissional. Teremos, na ótica do “pessimista”, o bem-estar das crianças em perigo e, deste modo, o bem-estar das sociedades futuras também em risco. Socorrem-se de investigações que apontam a ausência de uma figura masculina nas famílias como causa do comportamento antissocial e delinquência em rapazes e, de outras, que associam as mudanças na forma de sermos família a mudanças nas práticas parentais que conduzem a trajetórias de desenvolvimento desadaptavas (marcadas por insucesso e abandono escolar; problemas de comportamento de início precoce; …) e que culminam na exclusão social.

O “otimista” verá na “individualidade” o contexto para o desenvolvimento de um raciocínio moral baseado na procura de um equilíbrio entre as necessidades individuais e as necessidades do outro de quem cuido. Um raciocínio de escolhas de valores e de afeto. O indivíduo cuidador, homem ou mulher, terá a capacidade de decidir: não decide fazer ou não fazer algo porque há um imperativo moral, arbitrário, que lhe impõe essa obrigação, mas porque considera “estar certo” fazer. Será uma forma de “raciocínio moral baseado no cuidar do outro”. O “realismo compassivo” vem ocupar o espaço do “código moral” [2]. A felicidade não é procurada, só, nas relações de conjugalidade. Mulheres e homens procuram felicidade em diferentes relações: as mulheres encontram-na, em ordem decrescente de importância, nas relações com os/as filhos/as, nas relações com amigos e família, na relação com o conjugue/parceiro e só depois nas finanças, dinheiro, segurança, às quais se seguem o lazer e interesses e, por fim, o emprego e o trabalho; os homens encontram-na, também por ordem decrescente de importância, nas relações com amigos e família, nas relações com os/as filhos/as, no lazer e interesses, no emprego e no trabalho, seguindo-se relação com o conjugue/parceiro e, por fim, finanças, dinheiro, segurança [2]. Felicidade e conjugalidade desligaram-se. Casamento e conjugalidade também. Parentalidade, conjugalidade e casamento também.

Estas mudanças e diversidade na(s) família(s) têm de impulsionar as sociedades a encontrar mecanismos que apoiem a função primordial das famílias, o cuidar (de si mesmo, dos outros e das comunidades) e, tendo em conta o âmbito deste artigo, o cuidar das crianças e jovens, jovens estes que abandonam cada vez mais tarde as suas famílias. Alguns dos caminhos apontados são os da implementação de: condições e horários de trabalho flexíveis; acesso a prestação de cuidados de boa qualidade (creches, jardins infância, tempos livres, …) e melhores remunerações, condições e formação a trabalhadores que prestam esses cuidados; dar ao adulto cuidador a possibilidade de escolher o que para si é a melhor forma de cuidar do outro. Por fim, e não por último, o apoio à “parentalidade positiva” [3] entendida pelo Conselho da Europa como “O comportamento parental que respeita os melhores interesses e direitos das crianças, tal como estabelecidos pela Convenção das Nações Unidas, a qual também reconhece as necessidades parentais e os apoios que lhes devem ser dados. A figura parental positiva cuida, capacita, orienta e reconhece as crianças como indivíduos de direitos. A parentalidade positiva não é parentalidade permissiva: define os limites que a criança necessita para a apoiar no desenvolvimento máximo do seu potencial. A parentalidade positiva respeita os direitos das crianças e a necessidade de serem cuidadas num ambiente não-violento”. A parentalidade é transportada para o domínio público: abandona a esfera privada da família face aos valores mais elevados de proteção e promoção dos direitos das crianças e das famílias.

O Conselho da Europa não se limitou a elaborar um conjunto de princípios que estão na base do conceito de parentalidade positiva, nem a reconhecer que há uma diversidade de formas positivas de cuidarmos das nossas crianças. Foi mais longe e em 2006 elaborou uma Recomendação (Recomendação 2006(19) do Committee of Ministers Recommendation) [3] para que os estados membros desenvolvam, implementem e apoiem um conjunto de medidas de apoio à parentalidade positiva. Em 2009, em Viena, os ministros, com responsabilidade nos assuntos da família, dos estados membros do Conselho da Europa, reafirmaram a centralidade das crianças e das famílias nas políticas europeias com a discussão do tópico “Public Policies Supporting the Wish to Have Children: Societal, Economical and Personal Factors” [4]. Em Novembro de 2011, no Mónaco, decorreu a “Conference on the Council of Europe Strategy for the Rights of the Child 2012-2015”, sendo uma das linhas estratégicas da construção de uma Europa “Com e para as Crianças” a intencionalmente designada iniciativa “Children’s rights start at home: strong families for strong children” [5].

Como procurámos (re)pensar ao longo deste texto a “mudança” e a “diversidade” marcam a(s) família(s) de hoje. Há porém uma “continuidade” que atravessa sociedades e gerações e para a qual urge (re)pensarmos estratégias: a pobreza das nossas crianças. Num momento sociohistórico em que muitos países da Europa e do mundo atravessam mais uma crise económica, não podemos esquecer o ditado português que nos alerta para os perigos da pobreza no aumento de desrespeito do direito que a criança tem a uma família de afeto pautada pela “não violência”: “em casa onde não há pão, todos ralham e nenhum tem razão”.

Terminamos, acompanhadas por Luc Ferry, que com a sua obra “Família amo-vos” nos apoia no encontro de um “novo humanismo” que tem como prioridade a família, por quem estaremos dispostos a todos os sacrifícios, porque se trata de uma família de afeto, construída em torno de relações de afeto (e de amor), continuando a ter como principal função o cuidar. Se houvesse resposta milagre “a família como local e rede de afeto” seria essa resposta. Não havendo, é apenas parte das respostas que teremos de (continuar) a construir.

Notas

[1] Blankenhorn, D. (1990). The family in transition. In D. Blankenhorn, S. Bayne, & J. Elshtain (Eds.). Rebuilding the nest: A new commitment to American family (pp.3-24). Milwaukee, WI: Family Service America.

[2] Williams, F. (2010). Repensar as famílias. Cascais: Princípia

[3] CoE (2006b). Recommendation Rec(2006)19 of the Committee of Ministers to member states on policy to support positive parenting (Adopted by the Committee of Ministers on 13 December 2006 at the 983rd meeting of the Ministers’ Deputies) [online] [consult. 10-5-2011]. Disponível em http://www.coe.int/familypolicy/data base

[4] http://www.coe.int/t/dg3/familypolicy/ministerialconf_june2009/default_en.asp

[5] http://www.coe.int/t/dg3/children/

[6] Ferry, L. (2007). Familles je vous aime. Paris: XO Editions.

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