Sociologia da violência

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Sociologia da violência

Autor: António Pedro Dores

Filiação institucional: ISCTE-IUL

E-mail: antonio.dores@iscte.pt;

Site: http://iscte.pt/~apad/novosite2007

Palavras-chave: violência, teoria social, sociologia da violência

Na estruturação das sociedades humanas, hoje como anteriormente, a violência organizada e espontânea – ou um misto das duas – é determinante para a condução da vida privada e pública. Isso mesmo notou Giddens, logo nos anos 80, quando comentou sobre as dimensões sociais, propondo reformular o velho esquema político-económico-social-cultural num outro, capitalista-industrial-bélico-segurança. Sem eco. Mais recentemente começou a ser notada a falta de consideração da sociologia pela violência, como tema e, sobretudo, como fonte de causalidades estruturais, em especial com trabalhos recentes de Wiewiorka e Randal Collins.

O autor francês, especialista em movimentos sociais, classifica-os em verdadeiros (aqueles que correspondem aos critérios pré-determinados por Alain Touraine como proporcionadores de hipóteses de efectivo impacto político) os falsos (aqueles não satisfazem essas as condições mínimas de potencial utilidade prática) e os anti-movimentos sociais (os movimentos sociais que não favorecem o progresso social, tipicamente os movimentos belicistas). Em La Violence o autor estuda muitos trabalhos de sociólogos que trataram da violência. A ponto de ficar a dúvida se a sociologia, afinal, sim ou não, esqueceu a violência como tema e assunto de investigação. Não se tivesse dado o caso de ser ele o Presidente do congresso da ISA de 2010, em Gutemburgo, onde vários temas (o primeiro dos quais a violência) foram destacados como exclusões a recuperar, a dúvida ainda persistiria.

Como explicar esta contradição de Wiewiorka? A violência é muito estudada ou é excluída da sociologia? Duas pistas de explicação podem ser seguidas: a) a violência é anti-social, escreve algures o autor: portanto não é alvo da sociologia, interessada com os processos de socialização pacíficos e não com processos de resistência ao progresso; b) a violência institucional não é objecto dos estudos citados no livro acima citado, segundo nos informa nas conclusões: a violência quotidiana é conhecida e descrita, mas a violência estrutural é ignorada e escamoteada. Dito de outra forma: a violência tem sido epistemologicamente excluída das teorizações sociais através da repugnância moralista e da visão unilateral do fenómeno inculcadas nos sociólogos como ética profissional moralista. Por isso, do mesmo modo que Engels se queixava contra os usos economicistas do marxismo pelos marxistas ou Parsons se queixou contra os críticos que se recusavam a ver como o seu modelo AGIL era capaz de analisar as mudanças sociais, a sociologia dominante tem, sim, tratado da violência mas num enquadramento epistémico de isolamento e expulsão da realidade. A violência existe mas pode e deve ser ignorada. Seja por pudor ou por esperança de surgimento de um mundo novo. Pode ser invocada e, ao mesmo tempo, não problematizada (veja-se, por exemplo, o curso “Global Sociology Live” de Burawoy na internet).

A sociologia acompanha a ideologia dominante quando acredita, sem problematizar, na pureza moral dos militares ocidentais e das instituições em geral, ao abrigo de um progresso determinístico e universal da razão e do sucesso (pacífico?) do controlo social da violência. É vítima de um ambiente apologético da modernidade inscrita na sociogénese da teoria social (e do Estado Social) que é hora de ultrapassar, se se quiser actualizar a teoria às necessidades emergentes da sociedade em transformação.

Randal Collins em Violence fala-nos de uma violência exclusivamente física (outros tipos de violência, psicológica ou simbólica por exemplo, não seriam manejáveis metodologicamente, alega). Usa os filmes obtidos profusamente pelas forças de segurança nas ruas vigiadas por vídeo para fazer a micro-sociologia da violência. Concluiu que se verifica ser extraordinariamente difícil às pessoas passarem a vias de facto. Fica-se sem saber se pessoas treinadas para a violência – nomeadamente as forças militares e policiais – ou as pessoas necessitadas do uso da força para se afirmarem enquanto seres humanos, como quem viva nos mundos do crime, da pirataria ou da guerra, obedecem aos mesmos padrões de micro-sociologia. Como também não sabemos como explicar a violência doméstica e a violência contra pessoas institucionalizadas: apenas se sabe que se estimam violências inimagináveis (1/3 de crianças abusadas sexualmente nos EUA ou 40% de maus-tratos a idosos em Portugal, por exemplo). Mas, sem dúvida, Collins dá um passo enérgico no sentido de afirmar a necessidade de problematizar a violência como fonte e constrangimento de sociabilidades, ainda que para já, no quadro metodológico utilizado, basicamente a violência apareça à margem da vida quotidiana. O que é surpreendente para o leigo, em função da experiência quotidiana, em especial num tempo em que a comunicação social e a política tanto insistem nos perigos da falta de segurança. Parece confirma-se a tendência epistémica e metodológica da sociologia para evitar encarar a violência: o método reconhecidamente não a encontra.

A sociologia da guerra, no sentido largo e realista que lhe deu Bouthoul no seu Traité de polémologie, é uma proposta que merece ser revisitada para este efeito. Bem como as sociologias das polícias, das prisões, das instituições de acolhimento de doentes, crianças e jovens, idosos. E ainda das organizações de direitos humanos, sejam elas adstritas às funções de protecção civil, às funções militares ou às iniciativas da sociedade civil. Não bastará, porém, verificar como a idade, o género, o estatuto social, o nível de escolaridade influenciam as probabilidades de envolvimento e confronto com situações de violência. É preciso sobretudo revelar e ultrapassar os limites epistemológicos impostos ao pensamento sociológico pelo nosso ethos tradicional e deixar de aceitar sem crítica as referências a descrições de violência física sem se procurar entender o sentido que possa ter essa violência no quadro da estruturação da sociedade, para conservar o status quo ou para o transformar.

Se a sociologia da violência se tornar uma mera especialidade sociológica, como as sociologias do corpo ou das emoções (evidentemente aparentadas), sem impacto geral nas formas epistemológicas comummente utilizadas, continuaremos a valorizar os génios de Norbert Elias ou de Michel Foucault mas não os saberemos utilizar nem criticar. O progresso modernizador foi e é, afinal, em larga medida, obra da superioridade militar ocidental e da superioridade das forças de segurança do Estado contra potenciais dissidências. É preciso construir, discutir e divulgar uma nova grande narrativa sociológica capaz de reconhecer isso.

 

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