Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia
Título do artigo: Integração, normalização e diferenciação: algumas reflexões para (não) balizar a discussão (II)
Autora: Maria José Casa-Nova
Filiação institucional: Instituto de Educação, Universidade do Minho
E-mail: mjcasanova@ie.uminho.pt
Palavras-chave: normalização, diferenciação, educação escolar.
DIFERENCIAR DO PONTO DE VISTA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
A norma considerada normativa e, consequentemente, hegemónica, tem como efeito a tentativa de anulação da diferença ou a classificação da diferença como anormal no sentido patológico do termo, sendo necessário normalizar esse “Outro”, produzindo nesse “Outro” os comportamentos esperados pela sociedade maioritária.
No caso das crianças ciganas, essa classificação da diferença como anormal no sentido patológico tem tido como consequência a transformação da diferença cultural em deficiência mental (Casa-Nova, 2008) e como efeito a “orientação” de crianças ciganas para um tipo de ensino que, sendo considerado pelos seus proponentes como “adequado” ao estádio de desenvolvimento cognitivo destas crianças, as enclausura numa realidade que, não sendo efectivamente real, se concretiza por efeito das novas práticas educativas. No caso português, assistiu-se recentemente (e assiste-se) à constituição de várias turmas de primeiro ciclo apenas de crianças ciganas, a frequentar os designados PCA – Percursos Curriculares Alternativos (ou seja, um currículo substancialmente menos exigente do ponto de vista do conhecimento científico que transmite) a pretexto da ausência de capacidade educativa destas crianças dentro do currículo-padrão.
Esta desculpabilização profissional e culpabilização da vítima, tão “normal” entre grupos cujos montantes e tipos de poder são substancialmente diferentes e fortemente hierarquizados, tem como consequência a negação de novas e diversificadas oportunidades de vida, fechando as crianças e jovens ciganos num tipo de vida social e profissional que uma parte das gerações mais jovens já não perspectivam para si.
Do ponto de vista científico, na perspectiva crítica em que me situo, diferenciar em educação significa elaborar “dispositivos de diferenciação pedagógica” (Stoer e Cortesão, 1999), que possibilitem às crianças provenientes de universos culturais e sociais não coincidentes com o universo cultural e social escolar (nomeadamente crianças de origem cigana ou crianças provenientes de classes consideradas de menor estatuto social) a aquisição da cultura-padrão escolar sem perda da sua cultura de origem, potenciando a aquisição de um “bilinguismo cultural” (Ibid.) que as torna portadoras de duas culturas e, consequentemente, mais preparadas para os desafios das sociedades contemporâneas.
Como referiu Bernstein (1982:30), “a introdução da criança aos significados universalistas das formas públicas de pensamento não é «educação compensatória»; é educação.”
Negar às crianças e jovens o acesso ao “conhecimento poderoso” (Young, 2010), ou seja, o conhecimento produzido pelas diferentes ciências, vertido em programas académicos, significa negar-lhes a possibilidade de diversificar oportunidades, de mobilidade social ascendente, de igualdade de oportunidades escolares e de vida. Possibilitar-lhes o acesso àquele conhecimento significa proceder a um processo de “recontextualização” no espaço escolar e à construção de práticas educativas capazes de tornar significativo o conhecimento escolar através da construção das margens que sustentam a ponte que permite a circulação e articulação dos diferentes tipos de conhecimento: escolar e de experiência de vida.
Esta articulação entre, por um lado, o acesso ao e domínio do “conhecimento poderoso”, que confere poder e prestígio social aos seus portadores, e, por outro, a manutenção das características diferenciadoras e identificativas de um dado grupo socio-cultural, possibilitaria uma integração para a emancipação e não uma integração para a subordinação, estruturando as sociedades de forma não hierarquizada.
Apenas dentro de um quadro teórico que perspective a existência de múltiplas normas, entendidas como normais mas não normativas (Casa-Nova, 2009), será possível construir um tipo de práticas educativas e sociais que reconheça a existência da diferença cultural na base da igualdade com equidade e não num sistema classificatório patológico, potenciador da desclassificação plural desse “Outro” e/ou da anulação da diferença.
Esta é uma proposta teórica que procura romper com o paradigma dominante, propondo a construção de um novo paradigma do ponto de vista da estruturação das relações sociais e da forma e conteúdo de perspectivar todas as diferenças, construindo lugares com o mesmo valor social.
Como escrevi há mais de uma década (Casa-Nova, 2002:158), as utopias, enquanto lugares em construção, serão ou não concretizáveis através da capacidade de mobilização das nossas energias no sentido da emancipação.
Para que a humanidade caminhe para uma nova consciencialização de si, em que a semelhança não seja sinónimo de anulação das diferenças, mas do valor intrinsecamente igual(itário) de cada (e todo o) ser humano.
Referências Bibliográficas
Bernstein, Basil (1982) A educação não pode compensar a sociedade, in Sérgio Grácio e Stephen Stoer (Orgs.) Sociologia da Educação II. A construção social das práticas educativas. Lisboa: Livros Horizonte, pp. 18-31.
Casa-Nova (2002) Etnicidade, Género e Escolaridade. Lisboa: IIE – Instituto de Inovação Educacional.
Casa-Nova (2008) Tempos e lugares dos ciganos na educação escolar pública, in Maria José Casa-Nova & Paula Palmeira (Orgs.) Minorias. Lisboa: Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, pp-7-55.
Casa-Nova (2009) Etnografia e produção de conhecimento. Lisboa: ACIDI – Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural
Stoer, Stephen & Cortesão, Luiza (1999), Levantando a pedra. Porto: Porto Editora.
Young, Michael (2010) Conhecimento e currículo. Porto: Porto Editora.



