Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: Como comunicar ciência quando todos falam e ninguém ouve. Reflexões preliminares (I)
Autora: Andreia Fernandes Silva
Filiação institucional: ISVOUGA – Instituto Superior de Entre Douro e Vouga
E-mail: a.silva@doc.isvouga.pt
Palavras-chave: comunicação de ciência, saturação de informação, comunicação da comunicação.
Vivemos nos meios de comunicação, não com os meios de comunicação, afirma Mark Deuze [1], ao destacar que a mediação tecnológica não é mais uma camada externa à vida social, mas parte intrínseca da nossa experiência quotidiana. Esta observação ajuda a compreender o atual cenário da comunicação de ciência: um campo onde a proliferação de vozes, plataformas e formatos torna urgente repensar como, por que e com quem se faz a disseminação do conhecimento científico.
Numa era de hiperconectividade e excesso de informação, em que a simples presença da ciência nos meios de comunicação e redes sociais, não assegura a devida visibilidade nem é garantia de autoridade. Num ambiente em que políticos, comentadores, influenciadores, celebridades, algoritmos e opiniões se sobrepõem a dados e evidências, a comunicação científica enfrenta uma dupla missão: combater a desinformação e construir confiança alcançando múltiplos públicos.
Deuze [1] descreve o ecossistema mediático como uma ecologia comunicacional fragmentada. O público é cada vez mais diverso, ativo e imprevisível, moldando a sua relação com a ciência com base em experiências pessoais, crenças culturais e nas novas lógicas de rede. Neste contexto, a autoridade científica tradicional — baseada em especialização, método e rigor — tem dificuldade em se evidenciar. O desafio é simbólico: é preciso comunicar com clareza, mas também com empatia, propósito e abertura ao diálogo.
Cardoso [5] assinala o novo paradigma da comunicação, caracterizado por uma intensa mediação algorítmica, onde as plataformas digitais não apenas transmitem informações, mas também influenciam e moldam o conteúdo e a forma das mensagens. Nesse entendimento, defende-se o papel ativo dos indivíduos na criação, interpretação e disseminação das mensagens, especialmente em um contexto mediado por tecnologias digitais e algoritmos.
Como observa Granado [2], a tradução do conhecimento científico para o espaço público exige mais do que simplificação ou popularização. Trata-se de um esforço deliberado de mediação que considera linguagens acessíveis, formatos atrativos e uma abordagem centrada no polo do recetor, que se encontra disperso pelas múltiplas plataformas e, em simultâneo, refém de bolhas informativas. Mais do que informar, comunicar ciência hoje é escutar ativamente, estabelecer pontes culturais e respeitar os contextos socioculturais dos diferentes públicos. Isso significa adaptar-se sem perder o rigor, e envolver sem ceder à superficialidade, exigindo-se, mais do que nunca, profissionais especializados e dedicados à área.
Entretanto, este cenário traz dilemas práticos e éticos, também para jornalistas. Granado [2] alerta para o risco de um jornalismo de ciência que se limite a relatar descoberta após descoberta, como se os cientistas fossem figuras idealizadas, intocáveis e moralmente superiores. A cobertura científica não pode ser deslumbrada nem acrítica: é papel do jornalismo investigar, contextualizar e traduzir, evitando o exagero e a desconfiança infundada. Isso exige profissionais com formação/conhecimentos em ciência e nas suas dinâmicas internas, capazes de distinguir entre descoberta real e o exagero mediático, entre progresso e promessa vazia.
Em simultâneo, mantêm-se as mesmas limitações do campo jornalístico: prazos curtos, falta de tempo para verificação aprofundada e a agora mais intensa pressão pelo envolvimento digital, aumentando a tentação de simplificar excessivamente ou de reproduzir os comunicados de imprensa, comprometendo a missão informativa e o rigor do conteúdo. Além disso, o domínio das plataformas por grandes corporações tecnológicas — que priorizam o que é viral, rápido e emocional — dificulta a circulação de conteúdos complexos, como frequentemente é o caso da ciência.
É nesse ponto que a confiança emerge como dimensão crucial. Confiar na ciência não é um ato automático, envolve contexto, história, cultura, política e experiência vivida. Comunicar ciência é também comunicar processos, dúvidas, limites e incertezas, e não apenas resultados finais. É mostrar a ciência como atividade humana — com ética, falhas, revisões — e, justamente por isso, valiosa.
A relação entre a ciência e o jornalismo precisa ser reforçada. Ainda persiste, em muitos ambientes académicos, uma visão instrumental da imprensa, como mero veículo de divulgação, até pela exigência de que o conhecimento que só o é quando publicado [4], primeiro nas publicações científicas com impacto depois pela disseminação mais alargada e fomentadora da visibilidade. Já do lado do jornalismo, prevalece o desconhecimento sobre os tempos e linguagens da ciência, sujeitando-se à dependência das fontes organizadas [2]. Superar essa lacuna exige diálogo, formação e colaboração interdisciplinar. Cientistas precisam entender os critérios e ritmos do jornalismo, assim como jornalistas precisam se familiarizar com a cultura científica.
Nesse processo, as tecnologias digitais — incluindo a disseminação do uso inteligência artificial (IA) — exigem atenção redobrada. Usadas com ética e cuidado, ferramentas como IA generativa podem ajudar a resumir dados complexos, identificar tendências e gerar esboços de conteúdo. No entanto, a sua utilização não substitui o olhar crítico nem a responsabilidade editorial. A automação sem intervenção humana tende a amplificar erros, enviesamentos e superficialidades.
Em tempos de desinformação organizada e campanhas de desvalorização da ciência, o jornalismo especializado deveria ter um papel estratégico, deve ser capaz de construir narrativas sustentadas, dialogar com as dúvidas legítimas do público e reconhecer as tensões entre ciência, política, economia e valores sociais.
Comunicar ciência, hoje, é também uma forma de resistência. Resistência ao ruído, à superficialidade e à manipulação. Mas também é um convite à escuta, à curiosidade e à reconstrução da confiança social em tempos fragmentados. Como aponta Deuze, vivemos nos meios, imersos neles — e é justamente por isso que precisamos reinventar a forma como falamos de ciência, com ciência, para e com a sociedade.
Notas:
[1] Deuze, M. (2021). “On the ‘grand narrative’ of media and mass communication theory and research: a review”. Profesional de la información, v. 30, n. 1, e300105.https://doi.org/10.3145/epi.2021.ene.05
[2] Granado, A. (2024). Jornalismo de Ciência: uma janela para a aventura do conhecimento. In L. Horizonte, & J. Lourenço (Eds.), Jornalismo de Especialidade (Vol. I, pp. 365-379). Livros Horizonte.
[3] Granado, A. (2019, 15 de fevereiro). Fake news: “A verificação dos factos é a essência do jornalismo”. SAPO 24. https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/fake-news-a-verificacao-dos-factos-e-a-essencia-do-jornalismo-lembra-antonio-granado
[4] Magalhães, S., Vidal, D. G. Lencastre, M. P. A (2024, janeiro 6). Porque só é conhecimento quando é publicado: manifesto pela integridade da publicação académica. Plataforma Barómetro Social. https://www.barometro.com.pt/2024/01/06/porque-so-e-conhecimento-quando-e-publicado-manifesto-pela-integridade-da-publicacao-academica/
[5] Cardoso, G. (2023). A comunicação da comunicação. As pessoas são a mensagem. Editora Mundos Sociais.
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