N.º da Publicação: 4ª Série de 2015 (dezembro 2015)
Dimensão analítica: Economia e Política
Título do artigo: Boas intenções keynesianas e inferno de Euro-constrangimentos
Autor: João Carlos Graça
Filiação institucional: SOCIUS e ISEG, Universidade de Lisboa
E-mail: jgraca@iseg.ulisboa.pt ; jogra1958@netcabo.pt
Palavras-chave: pertença à Eurolândia, constrangimentos de política económica, ausência de lucidez política, bloqueios de capacidade decisória.
Dado o facto de a Plataforma Barómetro Social ter, há pouco mais de um ano, publicado já um texto meu em que proponho um breve diagnóstico da situação portuguesa dos pontos de vista económico, político e “moral”, como em tempos costumava e talvez devesse voltar a dizer-se, sugerindo um certo número de correspondentes terapias, dispenso-me conscientemente de voltar aqui a esse grupo de assuntos, em vez disso preferindo (e espero obviamente que me seja perdoada esta inclinação ou mesmo deformação profissional) considerar essa lição escutada e aprendida, partindo daí para umas quantas inferências adicionais. Em resumo, e assumindo como adquiridas as ideias anteriormente expostas, a situação portuguesa permaneceu fundamentalmente no mesmíssimo leito de Procusto em que a retêm a pertença à Eurolândia e a correlativa impossibilidade de proceder a desvalorizações cambiais competitivas. Claro que em cima disso, que é problema que já vem desde o princípio do século/milénio, ficámos ainda com a questão da enorme dívida privada externa, a qual resvalou seguidamente, e como se sabe, também para dívida pública. Mas essas são apenas “infeções oportunistas” que não, recordemo-lo, o nosso problema principal.
Ciclo volvido de eleições legislativas, nova maioria entretanto formada, ficámos antes de mais com um enorme folclore político-mediático em que o Presidente da República acabante e os media mainstream, entre diversos outros intervenientes, se rebolaram demoradamente a “debater” o transcendente problema de a nova maioria ser legítima ou não… e um certo número de problemas afins, dotados como se entenderá duma tremenda dignidade política, duma agonizante relevância e duma enorme substância intelectual “intrínseca”, digamos assim. Deste impasse, ou deste atoleiro, deveremos todos sair mais tarde ou mais cedo, aliás talvez já estejamos mesmo a sair. Quanto antes, de preferência, que mais não seja em nome do predomínio dum “princípio de realidade” na conduta dos agentes, o qual acabará decerto por impor-se; mesmo à direita política portuguesa. E aí, nesse ponto ou nesse momento precisos, começamos então a defrontar os problemas autênticos.
Os quais são, reconheça-se, enormes. Quanto à realidade económica de fundo, o panorama mantém-se. No atual contexto de integração no Euro, se nos taparmos em cima, destapamos os pés; e se quisermos tapar estes, destapamo-nos necessariamente no peito. Para que não me acusem de teima excessiva e obstinação impertinente, recordemos um certo número de aspetos. O PIB deixou praticamente de crescer, depois de ter afundado a sério durante alguns anos. Travou-se entretanto mais ou menos a descida, ficámos como que parados “nel mezzo del cammin”, debatendo algures se são observáveis ligeiríssimas subidas trimestrais, ou pelo contrário ligeiríssimas descidas… mas já ninguém se atreve sequer a pensar ou esperar “mais alto”, suscitando a questão da retoma consistente, para não referir a convergência a prazo com os países mais ricos da Europa, a qual nos tinha sido prometida aquando da adesão ao Euro, o tal catching up em que realmente estávamos antes disso, que abandonámos na verdade já desde a própria adesão, mesmo bem antes da sucessão dos “anos horríveis” oficialmente de crise, com contração ano após ano dos níveis de riqueza medidos pelo PIB.
Quanto aos demais indicadores, o cenário é pouco melhor, ou ainda mais deprimente: trate-se das desigualdades sociais, que continuam excessivas ou se agravaram, trate-se dos chamados “indicadores sociais”, onde o ambiente também não é grande coisa (e isto, note-se, ainda é dizer pouco), quer no respeitante ao investimento medido pela FBCF, onde o afundamento ano após ano continua. Permanece, portanto, o cenário acabrunhante, com riscos óbvios de evolução para depressão económica de décadas, acompanhada pontualmente de deflação e acrescida enfim de considerável hemorragia emigratória dos mais jovens e mais qualificados, a qual, adicionada a envelhecimento generalizado, baixos níveis de fecundidade e contração da imigração, tenderá a produzir num prazo não muito distante uma “tempestade demográfica perfeita”… da qual diversos protagonistas serão decerto lestos a retirar consequências alegadamente inevitáveis em matéria de ulterior redução de direitos sociais, de mais retirada do Estado dos processos económicos, de maior cascata de privatizações ainda, etc. Valerá a pena deixar desde já o dedo levantado para destacar que esse, a ocorrer, constituirá em grande medida apenas um facto meramente “performativo”, criado pelo suicídio ou eutanásia coletiva que constituíram os próprios anos da “austeridade” furiosa? É melhor, em todo o caso, deixar o aviso feito, que mais não seja por descargo de consciência, embora seja muito reduzida a esperança de que haja nisso um significativo contributo real para qualquer mudança de trajetória.
O resto é, pode dizer-se, a “austera, apagada e vil tristeza” (para não dizer a “loucura normal”) do nosso debate político: de um lado, o timidíssimo keynesianismo à la Centeno, apostando na atenuação da “austeridade” e da obsessão com o equilíbrio orçamental, para deixar crescer um pouco a riqueza, esperando que o crescimento desta forneça as bases para uma subida mais saudável e mais sustentada das receitas fiscais, a qual vá resolver o problema orçamental de forma mais razoável e mais coerente, mas apenas um pouco mais adiante, em vez da fossanguice assanhadamente “austeritária” e neoliberal oficial, até agora prevalecente.
E face a isto, perguntar-se-á, porque não deixar o tal timidíssimo keynesianismo à la Centeno prosseguir no seu passo, porque não dar-lhe pelo menos “uma oportunidade”? Longe de mim, esclareçamos pois, qualquer intenção de negar essa tal oportunidade. Devo é, isso sim, alertar também para que, na minha sincera opinião, sem ocorrerem alterações ao nível da taxa de câmbio, quaisquer medidas de pendor keynesiano, mesmo que tímidas (quaisquer devoluções de salários ou pensões, por exemplo, ou quaisquer atenuações da incidência do IRS nos escalões mais baixos), tenderão a promover o agravamento dos desequilíbrios das contas externas, talvez o único aspeto em que a evolução portuguesa marcou pontos nos últimos anos, embora pelos piores motivos (não exportámos mais, mas importámos muito menos porque a malta não tem cheta, e isso lá contribuiu para equilibrar as contas).
Ora bem, é saudável a tímida atenuação da austeridade agora proposta pelo governo PS? Sim, claro que é. E devia aliás ser incentivada a ir bem mais longe ainda, quer por razões de política económica, quer mesmo, nalguns casos, por motivos de mera legalidade e constitucionalidade, que é o mesmo que dizer sanidade mental e política, ou na verdade simples prevalência do que quer que entendamos por “Estado de direito”: pense-se, por exemplo, no caso dos cortes dos salários dos funcionários e das pensões, que o Tribunal Constitucional reconheceu serem inconstitucionais, mas onde não apenas evitou a retroatividade da sua própria decisão (facto já de si muitíssimo discutível), mas recomendou mesmo, mui sagaz e bastante untuosamente, que a reconhecida inconstitucionalidade prosseguisse ainda durante algum tempo mais, enquanto aos governantes se revelasse necessário…
Mas essa simples reposição da sanidade e da legalidade deve inexoravelmente, cedo ou tarde (e muito provavelmente cedo), esbarrar da factualidade dos constrangimentos inerentes à nossa pertença à Eurolândia. A questão deve, creio, interpelar desde já toda a nova maioria, quer o PS quer os seus aliados de esquerda, um deles, o BE, aliás favorável por princípio ao Euro, o PCP oficialmente cético e muito hesitante quanto ao tema. Mas tudo isso são conversas mais amplas e envolvendo trajetórias em boa medida imprevisíveis, que por isso só mesmo no futuro poderemos continuar a ter.
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