Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: As novas & velhas práticas de consumo de cinema
Autor: Daniel Ribas
Filiação institucional: Instituto Politécnico de Bragança
E-mail: ribas.daniel@gmail.com
Palavras-chave: consumo de cinema, exibição alternativa, festivais.
A proclamação da “morte do cinema” tem sido, nas últimas décadas, manifestamente exagerada. O quadro analítico deste fim da sétima arte estrutura-se sempre a partir das mudanças técnicas em todo o aparato cinematográfico, desde a sua produção, à distribuição e exibição. No panorama português, essa “morte do cinema” tem sido particularmente ventilada nos processos de transformação recente do modo de “ver cinema”. Como em qualquer período, acusa-se a mais jovem geração de perder a sacralidade do cinema e da sala escura. Neste texto, pretendemos discutir estas transformações, sobretudo no exemplo português. Tentaremos argumentar que estas mudanças implicam apenas naturais mutações nas práticas dos públicos, o que aliás se comprova sempre que se aplicam filtros mais detalhados à história do cinema, e que certas práticas se vão renovando, apesar das transformações.
Dos públicos
Analisando os dados disponíveis sobre a circulação cinematográfica em “sala de cinema”, verifica-se, de facto, que a evolução dos números é decrescente, desde o pico estratosférico de meados da década de 70 – com números superiores a 40 milhões de espectadores/ano – até ao número atual, que circula entre os 12 e os 15 milhões. Se é certo que a marca dos 40 milhões tem um contexto específico – o fim da censura, imediatamente após o 25 de Abril – a verdade é inegável: o fenómeno social da sala de cinema tem decaído vertiginosamente. Como o quadro seguinte mostra, há, de facto, uma descida do número de espectadores entre a década de 70 e a situação atual. Aliás, essa descida é comparável também com o decréscimo de recintos, embora esse número tenha que ser visto com reserva, já que não implica a descida do número de ecrãs.
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Anos |
Recintos |
Ecrãs |
Sessões |
Espectadores (milhares) |
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1960 – 1969 |
456,5 |
– |
86 978,8 |
26 003,8 |
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1970 – 1979 |
– |
– |
129 957,7 |
33 801,1 |
|
1980 – 1989 |
387,9 |
– |
192 166,2 |
21 140,6 |
|
1990 – 1999 |
245,7 |
– |
204 776,0 |
10 400,8 |
|
2000 – 2009 |
191,2 |
505,3 |
557 837,1 |
17 283,5 |
|
2010 – 2013 |
162,5 |
554,3 |
633 551,0 |
14 654,7 |
Dados recolhidos no portal pordata.pt
A análise destes números obviamente implica a passagem do “ver cinema” de um paradigma de sala para outras práticas cinéfilas. Como discutimos antes [1], a última década do mercado cinematográfico português tem revelado as transformações genéricas que têm acontecido noutros países, acompanhando também a globalização de um certo consumo cinematográfico. Aliás, como está expresso num dos relatórios desenvolvidos pelo Observatório da Comunicação, “observa-se um acentuado e generalizado reforço do processo de privatização do consumo de conteúdos cinematográficos na esfera doméstica, transversal à sociedade portuguesa” [2]). Nesse estudo são caracterizados diversos grupos socioeconómicos e a sua relação com a experiência cinematográfica. Os dois mais significativos são os “cine-integrados” e os “cine-inovadores” que apostam em formas diversas de ver cinema (no primeiro caso, com uma forte componente da utilização do DVD; no segundo caso, utilizando todas as plataformas, incluindo o download na Internet de banda larga e o Video-On-Demand).
Em qualquer um dos casos anteriores (DVD, VOD e download), é quase impossível determinar os números concretos deste consumo, mas é admissível como “senso comum” a generalização destas práticas. Para além desta privatização, observa-se uma crescente diversificação da oferta de exibição, que passa por dois fenómenos que marcam os últimos anos: a sistematização de programação de cinema alternativo e a institucionalização dos festivais. Prolonga-se, neste contexto, as formas de cinefilia que marcaram a história do cinema e a história do cinema visto em Portugal.
Da cinefilia
A primeira década do novo século trouxe para Portugal aquilo a que designamos como a “institucionalização” dos festivais de cinema. Refira-se que, durante os anos 90, se tinha assistido a uma mudança de paradigma, com a generalização de salas dedicadas a uma programação diversa, que fugia ao cânone esmagador do cinema americano, que começava a implantar-se nas salas de cinema dos centros comerciais. Este fenómeno dualista (salas “alternativas” e salas de “pipocas”) foi aproveitado por Paulo Branco, que estendeu a sua influência de produtor à exibição, construindo um parque de salas muito razoável, aparecendo como formador de uma geração de cinéfilos. A este fenómeno, juntaram-se as célebres sessões de cinema da RTP2 e dos ciclos semanais “Cinco Noites, Cinco Filmes”.
Na década de 2000, e já passado o fulgor de Paulo Branco, o espaço vazio pareceu ocupado pelos festivais. Aos históricos Fantasporto, Cinanima ou Curtas Vila do Conde, juntaram-se, pelos menos, três grandes festivais em Lisboa (IndieLisboa, DocLisboa, Estoril Film Festival) e uma plêiade de outros festivais de menor dimensão um pouco por todo o país, que de certa forma baralharam o universo da exibição cinematográfica. Mesmo admitindo que estes festivais têm um público muito específico, não é demasiado ousado afirmar que eles marcam uma nova forma de cinefilia e uma possibilidade de contacto com objetos cinematográficos díspares, tanto em termos de género como de proveniência geográfica.
Este fulgor dos festivais como espaços alternativos, foi também acompanhado por outros fenómenos. A recente inauguração do Cinema Ideal é disso exemplo. Colocado no centro de Lisboa, esta sala parece vir reocupar o espaço perdido por outras salas, entretanto fechadas, procurando oferecer um espaço de excelência do “ver cinema” numa sala escura. O fenómeno recente da multiplicação da oferta de programação em sala de cinema no Porto é outro desses exemplos. Num espaço de dois a três anos, à oferta existente (Teatro do Campo Alegre, onde Paulo Branco mantém uma programação fora de Lisboa), juntou-se a de associações como a Milímetro e o reorganizado histórico Cineclube do Porto. No último ano, também a iniciativa “Há Filmes na Baixa” (Associação Porto/Post/Doc) concorreu para esta diversidade. Os fenómenos regionais, como os cineclubes locais, mostram como pode, ainda, haver uma prática de cinema em sala (um exemplo gritante são as salas cheias de Guimarães, onde o Cineclube local tem quase um milhar de sócios).
Atualmente, a circulação de filmes está num dilema complexo: a digitalização das salas parece encolher o catálogo exibível. Por outro lado, nunca foi tão fácil mostrar filmes contemporâneos (custos mais baixos; tecnologia mais acessível). Se o recente fenómeno de reposições continuar, podemos também estar a assistir a um ultrapassar do problema da digitalização, com uma oferta mais disponível.
Como vemos, o cinema não está morto. Está em mutação, em migração para outras plataformas. Nunca foi tão fácil ser cinéfilo (o mais estranho filme de série B pode, muitas vezes, ser facilmente encontrado na Internet). Mas a vontade de voltar à sala escura parece não ter desaparecido de todo.
Notas
[1] Ribas, Daniel. “2000-2009: o cinema do futuro”. In Cinema Português: Um Guia Essencial. Paulo Cunha & Michelle Sales (ed.). São Paulo: SESI-SP.
[2] Cheta, Rita (2007). Cinema Em Ecrãs Privados, Múltiplos e Personalizados. Transformação Nos Consumos Cinematográficos. Lisboa: OberCom. Disponível em <http://www.obercom.pt/content/452.np3>.
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