Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime
Título do artigo: Actuação concertada no combate ao tráfico de seres humanos
Autor: Hernâni Veloso Neto
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: hneto@letras.up.pt
Palavras-chave: Tráfico de seres humanos, crime contra a sociedade, actuação concertada
Começa-se este terceiro texto como se terminou o anterior. O filme retrata uma forma particular de rentabilização da natalidade que, neste caso, cria oportunidades para as redes de tráfico de pessoas. O agenciador procurava percorrer as diferentes comunidades para comprar raparigas jovens para, depois, as vender a traficantes de prostitutas. No caso, a menina foi vendida a uma intermediária, que a vendeu num leilão a um fazendeiro, o qual, depois de se ter aproveitado sexualmente dela, a coloca num bordel de uma aldeia em plena floresta amazónica.
Depois de vários meses sujeita a abusos sexuais, consegue fugir. Com a indicação e esperança de conseguir ajuda no Rio de Janeiro, dirige-se para lá, todavia, a janela de oportunidade acaba por ser uma nova porta de entrada nas malhas da prostituição. Volta a fugir. Mas isolada no mundo, o filme acaba com uma ideia de resignação, por parte da protagonista, a uma condição de criança analfabeta que não pode contar com ninguém no mundo a não ser com ela própria e com aquilo que sabe fazer, prostituir-se.
O filme também constitui como um bom exercício de caracterização de uma realidade que está mais próxima das pessoas do que elas pensam. O tráfico de seres humanos é um flagelo social que também deve dizer respeito à sociedade civil. Este tipo de tráfico sempre esteve presente na história da humanidade e dos povos que a constituem. Naturalmente, que os contornos em que existe na actualidade são totalmente distintos dos existentes há quatrocentos ou mil anos atrás.
Até há época moderna, o tráfico de seres humanos estava, principalmente, ancorado na compra e venda de escravos, que era uma actividade que gozava de uma alargada legitimidade social. A expansão dos impérios foi uma fonte quase inesgotável. As guerras entre povos rivais e a colonização do novo mundo alimentaram este monstro sequioso (exemplos: prisioneiros de guerra, populações nativas).
Com o aparecimento e difusão mundial do movimento abolicionista no decurso do século XVIII [1], progressivamente foi sendo aprovada legislação visando a eliminação de todas as formas de escravatura e a punição de quem a suscitasse. Portugal não foi excepção, merecendo destaque o decreto legislativo publicado em 12 de Fevereiro de 1761, abolindo a escravidão em Portugal e nas colónias da Índia, e a lei de 25 de Fevereiro de 1869 que instituiu a abolição da escravatura em todo o império português. Esta última lei foi a norma regulamentar propulsora da abolição da escravatura em Portugal, formalizando a prática como um crime.
Apesar da existência de escravatura não implicar necessariamente a existência de tráfico de seres humanos, continua a ser o principal móbil para a ocorrência de tráfico. Genericamente, o tráfico de seres humanos pode ocorrer para fins de exploração laboral, de exploração sexual, de extracção de órgãos para transplante e de venda de bebés e crianças. Durante muitos séculos, o tráfico de seres humanos tinha como principal fim a exploração laboral, mas na actualidade já não se concretiza principalmente com esse intuito. Segundo o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, baseando-se num relatório da Iniciativa Global Contra o Tráfico de Seres Humanos das Nações Unidas, a exploração sexual assume-se como a forma mais relatada de tráfico, com 79% dos casos, sendo o tráfico para fins de exploração laboral o segundo tipo de situação mais registada (18% dos casos) [2]. No caso de Portugal, referia que no ano de 2009 foram registados cerca de 140 mil casos de pessoas vítimas de tráfico, reportando-se 84% dos casos à exploração sexual.
A dimensão transnacional que o fenómeno assume tem suscitado a consolidação de uma autêntica economia do tráfico de pessoas, apenas suplantada pela extensão e rendibilidade do tráfico de drogas e do tráfico de armas. O relatório “Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado” da Organização Internacional do Trabalho [3] evidencia que o tráfico de seres humanos gera, anualmente, cerca de 31,6 biliões de dólares. Os países mais desenvolvidos açambarcam cerca de metade desse valor (15,5 biliões de dólares), estimando-se que a Ásia absorva cerca de 9,7 biliões de dólares, os países do Leste Europeu cerca de 3,4 biliões de dólares, o Oriente Médio cerca de 1,5 bilião de dólares, a América Latina cerca de 1,3 bilião de dólares e a África subsaariana cerca de 159 milhões de dólares [4][5]. Dada a transnacionalidade do fenómeno, apenas uma actuação concertada nessa mesma esfera pode contribuir para a sua identificação e eliminação. A Nações Unidas tem contribuído significativamente para a constituição dessas plataformas de actuação. No entanto, os diferentes países também têm que cumprir o seu papel para que se possa resolver o problema (actuação na fonte) ou atenuar os seus efeitos (apoio às vítimas).
Em Portugal, em parte também devido aos próprios compromissos nacionais com as recomendações e convenções das Nações Unidas (exemplo: Convenção contra a Criminalidade Organizada; Protocolo adicional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas) [5], já foram criados mecanismos tendo em vista a monitorização do fenómeno e apoio às vítimas sinalizadas e confirmadas. Importa referir a criação do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (Ministério da Administração Interna), do Centro de Acolhimento e Protecção (CAP) a Vítimas de Tráfico e seus filhos menores (parceria alargada gerida pela Associação para o Planeamento da Família) e da Rede Nacional de Apoio e Protecção às Vítimas de Tráfico (parceria alargada coordenada pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género). Mas esta actuação, por si só, não é suficiente, será necessário um envolvimento social generalizado. O ciclo de intervenção contra o tráfico de seres humanos inicia-se com a sinalização de situações [5]. A sinalização de casos não compete, exclusivamente, aos mecanismos indicados e às forças policiais. Em primeira e última instância, deve ser uma competência de cada cidadã/ão. Qualquer pessoa pode sinalizar situações (através de denúncia), caso possua indícios que se esteja perante uma situação de exploração e tráfico de seres humanos. Para isso, torna-se necessário que as pessoas estejam informadas e conscientes da problemática.
Notas
[1] John L. Thomas (1965), Slavery Attacked: The Abolitionist Crusade, New Jersey: Englewood Cliffs.
[2] In http://www.publico.pt/Sociedade/trafico-de-seres-humanos-rendeu-25-mil-milhoes-de-euros-na-ue-em-2009_1461595.
[3] ILO (2005), A global alliance against forced labour, Disponível em URL [Consult. 30 Mar 2011]: <http://www.ilo.org/public/english/standards/relm/ilc/ilc93/pdf/rep-i-b.pdf>.
[4] Dias, Claudia Sérvulo da Cunha (coord.) (2005), Tráfico de pessoas para fins de exploração, Disponível em URL [Consult. 30 Mar 2011]: <http://www.oitbrasil.org.br/info/downloadfile.php?fileId=253>.
[5] Observatório do Tráfico de Seres Humanos (2010), Relatório Anual sobre Tráfico de Seres Humanos 2009, Disponível em URL [Consult. 30 Mar 2011]: <http://www.otsh.mai.gov.pt/?area=203&mid=000&sid=1&sid=000&cid=CNT4c21bdcfb7405>.