Pseudo-invisibilidade do tráfico de seres humanos

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Pseudo-invisibilidade do tráfico de seres humanos

Autor: Hernâni Veloso Neto

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: hneto@letras.up.pt

Palavras-chave: Tráfico de seres humanos, pseudo-invisibilidade, crime contra a sociedade

Recentemente fui convidado para participar num ciclo de cinema e debate sobre a problemática do tráfico de seres humanos. Desde logo, me disponibilizei para aceitar o convite e frisar a pertinência da iniciativa. Essa participação levou-me a reflectir um pouco mais sobre a problemática e passar para papel algumas das ideias e elementos que tenho analisado sobre o tráfico de seres humanos. Partindo da sessão em causa, tendo por referência a problemática e o filme analisado (“Anjos do Sol”, de Rudi Lagermann), compus quatro artigos de opinião onde procurarei explorar essas ideias e elementos.

O evento foi promovido pela Associação Famílias, uma Instituição Particular de Solidariedade Social de Braga, no âmbito do projecto de intervenção social designado por Convergências. É um projecto que foi constituído com o intuito de promover a igualdade e os direitos humanos, através da actuação em três domínios: a igualdade de género, a violência doméstica e o tráfico de seres humanos. A promoção do ciclo de cinema e debate insere-se no último eixo de intervenção, a luta contra o tráfico de seres humanos.

De facto, este tipo de iniciativas são pertinentes, não só porque permitem atribuir maior visibilidade ao fenómeno mas, principalmente, porque vincam a responsabilidade social das/os cidadãs/os. Esta atribuição está dependente da receptividade relativamente ao assunto e às iniciativas desenvolvidas para a sua discussão. Contribuir para a eliminação do tráfico de seres humanos, um dos crimes mais hediondos da humanidade, é responsabilidade de todas as pessoas. A forma como cada um lida com essa atribuição, determina em que medida assume socialmente esse direito e dever.

A questão da invisibilidade de determinados fenómenos sociais também é, ela própria, um fenómeno social per si. Tem sido bastante discutida nos últimos anos, mais especificamente ao nível da comunidade científica. Ainda no início do presente ano foi lançada no nosso país a obra “Portugal Invisível” [1]. Organizada por quatro investigadores do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa: António Dornelas, Luísa Oliveira, Luísa Veloso e Maria das Dores Guerreiro, a obra surge na linha de publicação similar lançada em França – La France invisible, de Jade Lindgaard, Stéphane Beaud e Joseph Confavreux (editada em 2008 em Portugal) [2]. Em ambos os casos, está subjacente a tentativa de sublinhar a existência de fenómenos sociais ocultos, numa sociedade que dispõe de recursos suficientes para os conhecer. De facto, um questionamento importante, até mesmo para a problemática do tráfico de seres humanos. Apesar de não ter sido trabalhada no âmbito da obra referida, surge retratada, na maioria das publicações e espaços de informação sobre o tema, como um fenómeno invisível.

Esta circunstância convida a que se repense a questão dos usos sociais dos dispositivos de acção pública e civil. Torna-se imprescindível questionar-se a interpretação e disponibilização que cada agente social, individual ou colectivamente considerado, faz da sua condição de cidadã ou cidadão; questionar a motivação e mobilização das pessoas para quererem saber sobre os assuntos. Ou seja, questionar o desconhecimento por irreflexão, que remete para uma pseudo-invisibilidade, devido às circunstâncias e contextos de invisibilidade provocada ou invisibilidade relativa. Provocada, porque é uma invisibilidade suscitada pela inacção e pela falta de interesse. São fenómenos invisíveis porque muitos segmentos sociais pouco ou nada fazem para contrariar essa situação, há uma ocultação e uma interiorização do desconhecimento por inerência de uma desresponsabilização cívica e de uma desvalorização do saber pelo saber (qual a relevância de saber estas coisas?! A cultura geral não enche barriga a ninguém?!). Relativizável porque na prática, por um lado, serão mais os fenómenos invisíveis do que visíveis numa determinada sociedade. Visíveis na medida em que a grande maioria da população tem consciência e está minimamente informada sobre os mesmos. Por outro lado, porque varia de sociedade para sociedade (variação inter-social) e varia de segmento social para segmento social (variação intra-social).

Em suma, o que se está a defender é que quanto mais desenvolvida for uma comunidade, quanto mais próxima dos princípios e pressupostos subjacentes a uma sociedade do conhecimento, mais visíveis se tornam os fenómenos. Porque não só existe mais e melhor acesso à informação como também existe uma maior propensão para o domínio dos códigos linguísticos necessários para a intelecção dos fenómenos (dependente do nível educativo atingido e/ou do nível de saber possuído).

A iniciativa referida, e o projecto de intervenção social em que se insere, são gotas num oceano transnacional de actuação que tem levado a problemática do tráfico de seres humanos a todas as partes do planeta. Durante muitas décadas, não se evidenciou uma orientação estratégica e uma orientação política na organização do combate a este flagelo social. Mas a última década e meia tem sido bastante profícua a esse respeito. Quer no plano mundial, quer no plano comunitário, quer, ainda, no plano da nação portuguesa, podem-se identificar linhas orientadoras e marcos concretos de uma actuação concertada. No plano transnacional, importa referir o papel das Nações Unidades, por via de estruturas como o Gabinete das Nações Unidas para a Droga e Crime (UNODC), a UNICEF ou o Comissariado para os Direitos Humanos e de programas como a Iniciativa Global contra o Tráfico de Seres Humanos (2007); no plano europeu, importa referir o papel da Comissão Europeia na organização de plataformas de trabalho que permitiram o desenvolvimento de programas como o Plano de Acção Contra o Tráfico de Seres Humanos da OSCE (2003), a Convenção Contra o Tráfico de Seres Humanos do Conselho da Europa (2005) ou o Plano de Acção sobre boas práticas, normas e procedimentos para a prevenção do tráfico de seres humanos (2005). Estas plataformas internacionais criam condições propícias para que cada nação pudesse estruturar e enquadrar a sua actuação, estabelecendo-se uma teia de amplo espectro.

Isto não quer dizer que a informação e a preocupação social chegue a todas as pessoas, porque o interesse por causas também é um estado de espírito e uma postura idiossincrática. Mas as instâncias internacionais e nacionais têm efectuado um esforço crescente para que o tráfico de seres humanos possa ser uma condição evitável.

Notas

[1] Dornelas, António; Oliveira, Luísa; Veloso, Luísa; Guerreiro, Maria das Dores (Org.) (2011), Portugal Invisível, Lisboa: Editora Mundos Sociais.

[2] Lindgaard, Jade; Beaud, Stéphane; Confavreux, Joseph (2008), La France invisible, Paris: La Decouverte.

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3 Respostas a Pseudo-invisibilidade do tráfico de seres humanos

  1. Paulo Machado diz:

    Caro colega,
    Apreciei bastante a tua reflexão.
    Julgo que ela ficaria mais completa, na linha e orientação do V/ Barómetro Social, se nela houvesse referência ao trabalho que tem sido feito no sentido da desocultação do TSH em Portugal, trabalho esse realizado pelo Observatório do Tráfico de Seres Humanos (em http://www.otsh.mai.gov.pt/).
    Um abraço
    Paulo Machado

  2. Hernâni Veloso Neto diz:

    Caro Paulo,

    Agradeço a leitura e comentário. De fato, não entro no trabalho do OTSH nestes dois primeiros textos. Faço um pouco isso num dos textos que falta publicar, de qualquer modo não vai fazer justiça ao trabalho que o observatório tem desenvolvido na desocultação do fenómeno. Porventura, noutra altura possa voltar ao assunto ou se o Paulo quiser refletir sobre isso, a PBS terá muito gosto em publicar.

    Um abraço,
    Hernâni Veloso Neto

    • Rita Penedo diz:

      Boa tarde,

      Já vi que a referência ao trabalho do Observatório do Tráfico de Seres Humanos foi citada e respondida.

      Aguardo com interesse os textos referentes ao nosso trabalho e mais reflexão sobre o tema. Deixo mais uma fonte de conhecimento que poderá ser útil: o blogue do Observatório no Expresso Online, intitulado ‘Novos Escravos’ http://aeiou.expresso.pt/novos-escravos=s25400

      Rita Penedo

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