O filme “Anjos de Sol” e o retrato de uma realidade cruel que é o tráfico de seres humanos

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: O filme “Anjos de Sol” e o retrato de uma realidade cruel que é o tráfico de seres humanos

Autor: Hernâni Veloso Neto

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: hneto@letras.up.pt

Palavras-chave: Tráfico de seres humanos, pseudo-invisibilidade, Anjos do Sol

Terminei o artigo anterior, o primeiro de uma série de quatro que elaborei sobre a problemática do tráfico de seres humanos, com a ideia que as instâncias internacionais e nacionais têm efectuado um esforço crescente para que o tráfico de seres humanos possa ser uma condição evitável. Um trabalho concertado tem permitido a constituição e difusão de uma plataforma de actuação. Em Portugal, essa plataforma estruturou-se em torno do Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos. O país conta, desde 2007, com um plano dessa natureza. Actualmente, está em vigor o segundo plano. O primeiro vigorou entre 2007 e 2010 e o actual considera o horizonte 2011-2013.

No âmbito destes planos, imensas iniciativas e mecanismos foram criados tendo em vista a disseminação e conhecimento da problemática, a protecção, apoio e integração social das suas vítimas, bem como a formação de agentes e estruturas para a sua prevenção, investigação e combate. O projecto Convergências tem o seu contexto de actuação nestes planos. A existência deste tipo de iniciativas, em conjunto com muitas outras acções e mecanismos criados por todo o país, contribui para que a luta societal contra o tráfico assuma outra grandeza, mas também incrementa a responsabilidade social das pessoas. Isto porque, por um lado, deixa de haver razões para a legitimação social da desresponsabilização individual sobre o pretexto de não existirem informações e acções que favoreçam o conhecimento do fenómeno; por outro lado, as pessoas aos estarem conscientes e capacitadas para reconhecerem e agirem sobre o fenómeno também as responsabiliza mais, na medida em que tendo os recursos necessários para agir, é exigível que não os ignorem e os coloquem em prática.

Tem se colocado mais a tónica na responsabilidade social do que na visibilidade social, porque se defende que o fenómeno do tráfico de seres humanos não pode ser considerado desconhecido. Existem imensos recursos produzidos e disponíveis sobre a problemática. As sociedades, em particular a portuguesa, dispõem de instrumentos adequados, não são perfeitos, mas favorecem uma actuação consistente e concertada sobre o problema. Naturalmente que quanto maior visibilidade tiverem os mecanismos de prevenção, melhor. Mas o mais importante é que exista um assumir das responsabilidades e que se concretizem acções para que as pessoas se consciencializem dessa necessidade e obrigação.

O ciclo de cinema e debate que estão na base desta reflexão, são um bom contributo para isso. A realização deste tipo de eventos espelha uma tendência social que transparece o relevo dos meios de comunicação social nas sociedades contemporâneas. Também deixa claro o esforço empreendido no sentido de aproximar a realidade e a ficção. O filme que esteve em debate na sessão, “Anjos do Sol”, de Rudi Lagermann, é um bom exemplo disso. Denota a propensão para o “ficcionamento do real”, por via da transposição dos factos e representações do mundo social para a ficção (para o ecrã).

Ao se procurar transportar histórias verídicas, factos históricos e situações do quotidiano para a ficção, por via, por exemplo, das telenovelas, séries e filmes, tenta-se: (i) tornar a ficção mais real; (ii) cativar mais as pessoas (traz maior envolvimento emocional, as pessoas reforçam a pertinência do visualizado por se basear em factos reais e começam a questionar se já aconteceu com pessoas conhecidas e se podia acontecer a elas próprias ou a pessoas próximas); e (iii) passar subliminarmente mensagens (podem ser bons dispositivos de informação e formação, na medida em que as produções costumam sustentar-se em fortes elementos de pesquisa e de aconselhamento técnico-científico, de forma a retratar o mais fidedignamente as situações). Esta estratégia tem funcionado como um forte veículo de exposição de fenómenos ocultos, atribuindo maior visibilidade social a determinados problemas. O mesmo se sucede com o tráfico de seres humanos. Existem diversos recursos cinematográficos que trabalham proficientemente a problemática. Ao filme “Anjos do Sol” também pode ser atribuído essa chancela.

O filme estreado em 2006 estrutura-se em torno de um conjunto de factos verídicos referentes aos roteiros e redes de tráfico de raparigas para exploração sexual no Brasil. Conta a história de uma menina de 12 anos, de seu nome Maria, que durante o verão de 2002 foi vendida pela família a um angariador de prostitutas. Tratava-se de uma família numerosa muito pobre que vivia numa comunidade do interior do nordeste brasileiro. A comunidade tinha poucas ligações com o mundo envolvente e não dispunha de condições de salubridade e de recursos educativos. Acabam por ser aspectos importantes, porque colocaram (e colocam) as famílias numa situação de vulnerabilidade muito forte face a este tipo de redes de tráfico de pessoas.

A família desconhecia ser essa a função da pessoa, uma vez que a mesma se apresentava como sendo um angariador de raparigas para irem servir (trabalho doméstico) em famílias com mais posses. Na expectativa de oferecerem melhores condições de vida às filhas, as famílias acabavam por as lançar num autêntico inferno. O filme procura relatar o calvário passado por esta criança depois de entrar numa rede de tráfico de raparigas para exploração sexual.

Não era a primeira vez que a família vendia uma filha. Era um procedimento que granjeava uma relativa normalidade na família e na comunidade. Na perspectiva da família, era uma forma de dar uma oportunidade às filhas e dar melhores condições de vida à própria família. É uma situação que contrasta com o paradigma vigente nas sociedades mais desenvolvidas, em que a natalidade é cada vez mais vista como um custo [compete à mãe e ao pai fornecer um projecto de vida às/aos descendentes (habitação, saúde, alimentação, educação, etc.)], arrolando-se como uma das causas do declínio das taxas de natalidade. Mas naquela comunidade e, em particular, naquela família, as crianças eram vistas como uma forma de obter rendimento. Um paradigma que vigorou durante muitos séculos em todo o mundo, contribuindo para a existência de linhagens de descendência mais extensas. Actualmente, as comunidades mais tradicionais são as que ainda preservam, de certo modo, o costume de ter muitas/os filhas/os, as/os quais, desde cedo, começam a contribuir e a funcionar como fonte de rendimento para a família.

O filme retrata uma forma particular de rentabilização da natalidade que, neste caso, cria oportunidades para as redes de tráfico de pessoas. Esta ideia será aprofundada no próximo texto.

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