Entrar no ENTRADO – breves andamentos de um projeto teatral

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: Entrar no ENTRADO – breves andamentos de um projeto teatral

Autora: Natália Azevedo

Filiação institucional: Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

E-mail: nazevedo@letras.up.pt; nataliazevedo@netcabo.pt

Palavras-chave: criação teatral, mediação cultural, estabelecimento prisional.

A nossa trajetória profissional tem-se situado entre as práticas da docência e da investigação e sugere-nos, desde que iniciámos percurso em 1992, uma diretriz estruturante: o papel profissional do sociólogo configura-se na relação constante e refletida entre a formação graduada e pós-graduada de públicos-alvo e o olhar orientado sobre o mundo social, com o desenho de projetos de investigação pura e aplicada. É da confluência entre ambos que se constrói no tempo um papel profissional situado. No campo da cultura e das artes, e num trabalho participado, de feição teórico-metodológica e artística, o sociólogo pode desenvolver uma prática de construção conjunta de conhecimento que fundamente propostas de intervenção sobre o território, as populações e as instituições culturais e artísticas. Quando assim é, e por entre discursos, práticas e relações de poder, o sociólogo terá que articular o saber fazer em ação com o saber estar reflexivo e interventivo. Ainda que se confronte com os limites, em amplitude e efeitos, da sua ação.

Estas reflexões surgem-nos na sequência de 2 experiências profissionais que vivenciámos. A primeira: a monitorização externa do projeto teatral ENTRADO (dezembro 2009/julho 2011), integrado no Festival Imaginarius 2010 e dinamizado no Estabelecimento Prisional do Porto pela PELE – Espaço de Contacto Social e Cultural [1]. A segunda: o diagnóstico sociodemográfico de moradores e não moradores no projeto pluridisciplinar Centro Histórico de Guimarães (setembro 2010/maio 2012), coordenado pela SETEPÉS e FRATERNA/Câmara Municipal de Guimarães [2].

Recuperemos a primeira experiência. Entrámos no ENTRADO com o intuito de acompanharmos o processo de criação teatral em contexto prisional e segundo os interlocutores envolvidos. Fazê-lo não tanto dentro, e a partir, do espaço prisão, mas sim fora, e à distância relativa dos atores, dos micro-espaços e tempos, e das relações entre reclusos, equipa artística e equipa diretiva e técnica da prisão. Face à temporalidade do processo e às especificidades do projeto, da instituição e do grupo de reclusos, optámos por um acompanhamento externo e distanciado do ponto de vista presencial. Com uma dominante qualitativa e exploratória, a abordagem desta história definiu-se numa temporalidade em 4 andamentos: o arranque do projeto; os ensaios; os 3 dias de apresentação pública; e o que fica para além do projeto? Com andamentos a velocidades diferentes, realizámos 12 entrevistas aos atores institucionais, artísticos e técnicos envolvidos, 17 inquéritos por questionário aos reclusos participantes (17 em 32 possíveis), análise de fontes documentais sobre o projeto e registos de observação direta participante nos dias da apresentação pública.

O ENTRADO foi um “Era uma vez…” difícil de iniciar. Mas, depois de iniciado, adquiriu por si só protagonismo. Sem situá-los consoante o seu perfil, há parâmetros que aproximam as narrativas dos atores participantes. A nosso ver, são virtualidades do processo criativo: tornar a arte teatral o mote desse processo conjunto de criação cultural (encenadores, reclusos, técnicos, guardas e direção); tornar diferente o quotidiano da prisão; alterar a forma como os reclusos se visualizam na nova condição de atores deles próprios; redimensionar as potencialidades de autoestima e de motivação do recluso; potenciar um trabalho coletivo de construção de um texto e de um saber estar em palco, assente na partilha de tarefas e no respeito pelo outro; aproximar a instituição prisional da comunidade exterior e relativizar as representações negativas que esta tem sobre o que são os reclusos e a prisão; vivenciar uma experiência de liberdade (mental e afetiva) num espaço-tempo de reclusão; transpor o espaço-tempo dos ensaios para o espaço-tempo da visibilidade pública; transformar a prisão numa sala de espetáculos durante 3 dias; e mobilizar as pessoas (públicos) para uma sala de espetáculos nada convencional.

Outros protagonistas na história foram as dificuldades e os constrangimentos: tornar visível e exequível o projeto no contexto institucional prisional; articular o projeto com a lógica de funcionamento da prisão; confrontar as resistências dos atores participantes, internos e externos ao contexto prisional; negociar as relações de poder instituídas no quotidiano da prisão; gerir as dificuldades financeiras associadas ao projeto – recursos insuficientes mas nada impeditivos da encenação propriamente dita; ultrapassar as resistências institucionais quanto à alteração de rotinas sempre que o teatro invadia a prisão; contrariar as dúvidas face à viabilidade e utilidade do projeto dadas as características da população-alvo; gerir a sobrecarga horária dos elementos da vigilância e segurança da prisão; desconstruir o estereótipo da masculinidade na relação proporcional com a não participação em atividades teatrais e de canto; confrontar a não seriedade ou a seriedade contida dos que acompanhavam de perto o trabalho dos reclusos; e gerir o afastamento relativo da direção da instituição quanto à discussão do projeto nas vertentes mais estruturais como a da continuidade formativa do teatro na prisão.

O que ficou para além do projeto em si, circunstancial e localizado no espaço e no tempo? Não ficou o teatro na prisão. Ficaram sugestões para as entidades responsáveis, políticas e organizacionais, técnicas e criativas: sedimentar um grupo de teatro na prisão; dar continuidade ao projeto, ou outros, dentro da prisão; fomentar atividades criativas similares que reposicionem o quotidiano de instituições totais; e associar tais atividades a intervenientes e contextos internos e externos à prisão.

A análise colocou-nos perante a ambivalência destes processos criativos. Mostrou-nos o caráter positivo do projeto, o enriquecimento que permitiu quanto ao desenvolvimento de competências sociais para a futura reinserção social, o sentimento de orgulho e de autorrealização dos reclusos. Traduziu experiências necessárias a nível pessoal e social; modos de desmistificação dos estereótipos associados a populações reclusas; formas de codescoberta de capacidades que os próprios reclusos desconheciam; momentos de convívio entre reclusos e entre reclusos e equipa artística; sentimentos de amizade, empatia, solidariedade e confiança entre os participantes – leigos e técnicos.

Porém, e no âmbito de uma estratégia possível de mediação cultural, algumas interrogações se nos colocam: qual é a sustentabilidade temporal e social de tais intervenções artísticas em contextos de instituições totais? Como entrecruzar a temporalidade curta e circunstancial destes projetos com as histórias de vida de atores sociais marcadas por problemas sociais mais estruturais? O que ficou para além dos números, das entradas de públicos, das vivências individuais, das sensações momentâneas, das reportagens e notícias nos meios de comunicação social, das reações da opinião pública, da abertura momentânea da prisão à comunidade exterior…? Do nosso ponto de vista, ficou a possibilidade destas pessoas – enquanto reclusos – vivenciarem por momentos uma opção que fizeram: participarem voluntariamente num processo criativo. Ainda que tal não implicasse mudanças imediatas nas suas trajetórias de vida, dentro ou fora da prisão. Tal possibilidade foi, acima de tudo, uma vivência num quotidiano prisional momentaneamente alterado, onde as partilhas se deram quanto a competências relacionais e técnicas e a gostos ou interesses entretanto descobertos pelo teatro e pelo canto. Como salientavam os reclusos nas anotações nos inquéritos: mais do que uma boa experiência, significou, para alguns, a descoberta de um gosto pelo teatro ou pelo canto; ou, para outros, uma forma de perspetivar positivamente o futuro, o mundo exterior e a reinserção social. Apraz-nos pensar que o fim da história teve (e tem) traços de uma história aberta.

Notas:

[1] Azevedo, Natália (2012), ENTRADO – Andamentos breves de uma monitorização in progress, In AAVV – Imaginarius ENTRADO, Percursos de um projecto teatral numa prisão, Porto: Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, PELE – Espaço de Contacto Social e Cultural, CCTAR – Centro de Criação de Teatro e Artes de Rua, pp. 68-83.

[2] Azevedo, Natália (2012) – Olhares sociológicos a partir de dentro – deambulações exploratórias no Centro Histórico de Guimarães, In AAVV – Paisagem com Cidade e Maçãs Vermelhas. Estudo multidisciplinar Centro Histórico de Guimarães. Projeto de Animação Pedagógica, Guimarães: Fraterna – Centro Comunitário de Solidariedade e Integração Social, pp. 33-51.

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