Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: Por uma Sociologia da Administração Pública em Portugal
Autor: Ricardo Cunha Dias
Filiação institucional: Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP), Universidade de Lisboa
E-mail: ricardo.daniel.cunha.dias@gmail.com
Palavras-chave: Sociologia, Administração Pública, Reflexividade.
Qual o papel da sociologia na administração pública? É relevante que a administração pública passe a ter uma vertente mais sociológica? Devemos ter uma sociologia da administração pública? A sociologia é uma das áreas científicas aceites nos doutoramentos de administração pública e é também uma área que enquadra diversas unidades curriculares nos diferentes graus dos cursos em administração pública em Portugal. Para além disso, os contributos teóricos da sociologia para o desenvolvimento do campo da ciência da administração pública são bem conhecidos [1], tal como é reconhecida a base filosófica comum de muitos dos seus pressupostos teóricos e práticos [2]. No entanto, o olhar sociológico tem sido pouco exercitado no ensino e nas pesquisas que integram a área disciplinar de administração pública no país, contrastando com a importância que lhe é reconhecido internacionalmente [3]. Num estudo, por nós realizado, aferimos que o peso agregado da sociologia enquanto área científica na totalidade dos programas de licenciatura e mestrado em administração pública em Portugal era de apenas 2,4%, cingindo-se às áreas da sociologia das organizações e da sociologia política [4]. A questão que se coloca é se tal é uma especificidade portuguesa, ou, se pelo contrário, se trata de uma resistência transversal à pesquisa em administração pública e se sim quais as razões para tal.
Numa primeira incursão, um texto sobre o contexto brasileiro [5] que se interroga justamente sobre a mesma questão, identificou uma narrativa de fortalecimento da identidade do campo como causa de tal distanciamento. O texto deixa a perceção de que os contributos da sociologia são como que apropriados pelos atores neste campo, quase como se não (re)conhecessem o contexto de origem de tais contributos. Ora, se tal distanciamento entre a sociologia e a ciência da administração pública pode ser concebido como o resultado de um processo natural de diferenciação identitária, é também de atentar que, como referido por Bourdieu [6], a apropriação não reflexiva de ideias pode levar à sua desvirtuação, sobretudo quando a aplicação das mesmas é desligada da sua genealogia e aplicações originais. No caso da ciência da administração pública, parece claro que as duas explicações estão interrelacionadas.
É certo que no que respeita à diferenciação disciplinar, a ciência da administração pública é um empreendimento que apresenta uma tensão essencial a vários níveis. Seja devido à tensão entre o seu caráter simultaneamente científico, aplicado e profissional; à tensão com a esfera política; à tensão criada com a sua aproximação ideológica à gestão privada; ou ainda à natureza interdisciplinar do seu objeto, a evolução do campo foi pautada por sucessivas crises identitárias, as quais geraram entendimentos distintos sobre qual é o objetivo de fazer pesquisa na área [7]. Assim, ainda hoje não é consensual se a administração pública é (ou deve ser), de facto, uma ciência que visa produzir conhecimento sobre a governação, enquanto seu objeto, ou é antes uma comunidade de interesses e de conhecimentos multidisciplinares aplicados cujo elemento comum é o propósito de melhorar esse objeto.
Essa tensão normativa (entre o desejado e o real/possível) fez-se sentir sobretudo entre duas tradições teóricas: uma preocupada com o desenvolvimento da administração pública como “ciência” e disciplina académica centrada numa abordagem positivista; e outra que enfatiza a administração pública como uma “arte” ao não poder ser desligada dos aspetos valorativos da ação humana e política, devendo ser orientada para o serviço à comunidade, através da formação de profissionais e académicos numa base interdisciplinar [7]. Em Portugal, parece prevalecer a primeira tradição, à qual acresce uma cultura governativa legalista e formalista que influenciou também o ensino e os estudos nesta área. Para isso também contribuiu a autonomização e institucionalização tardia da disciplina no país (que só se daria com a entrada no regime democrático), sendo a mesma marcada por uma adesão às tendências gestionárias internacionais e respetivas reformas [8].
É no quadro dessa adesão a modelos anglo-americanos dotados de uma vocação hegemónica na sua aparência universalizante que foram importadas teorias e práticas em que a eficiência e eficácia é preferível à reflexão epistemológica [9]. A proposta de tal ramo da sociologia não é nova, tendo sido apresentada pela primeira vez por Hill em 1972 [10]. Nessa proposta, Hill centrava-se em dois aspetos: no impacto de grandes instituições públicas nos sistemas de poder e nos arranjos infraestruturais dentro da administração pública. Porém, a governação faz-se hoje em arranjos institucionais alargados, mais ou menos formalizados, que vão para além do setor público, envolvendo múltiplos atores e estruturas, onde são exercidas várias formas de poder simbólico. Assim, uma sociologia da administração pública contemporânea implica uma “sociologia reflexiva” [6] que seja capaz de auxiliar a ciência da administração pública a produzir conhecimento sobre as novas práticas de governança e os poderes em jogo como objetos concretos e ao mesmo tempo refletir sobre as ideias e os modelos em que se baseia essa mesma construção.
Estamos em crer que tal sociologia teria muito a contribuir para o conhecimento do passado e das condições presentes da administração pública, assim como para fortalecer o diálogo e a reflexão junto dos atores no campo sobre os desafios da governança e perspetivas de futuro.
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Notas:
[1] Bezes, P. (2020). Seeing Public Bureaucracies Like a Sociologist: (A Plea Towards) Reconnecting Sociology and Public Administration. In Bouckaert, G., & Jann, W. (Eds.), European Perspectives for Public Administration: The Way Forward (pp. 163-185). Leuven University Press.
[2] Chanthamith, B., Wu, M., Yusufzada, S., & Rasel, M. (2019). Interdisciplinary relationship between sociology, politics and public administration: Perspective of theory and practice. Sociology International Journal, 3(4), pp. 353-357.
[3] Bertels, J., Bouckaert, G., & Werner, J. (2020). The Survey: A Long-Distance Conversation about the Future of Public Administration in Europe. In Bouckaert, G., & Jann, W. (Eds.), European Perspectives for Public Administration: The Way Forward (pp. 45-68). Leuven University Press.
[4] Dias, R.C. & Seixas, P.C. (preprint). Benchmarking ao Perfil Científico dos Programas de Administração Pública em Portugal: Tendências e Agendas de Futuro. DOI: 10.13140/RG.2.2.26577.61282
[5] Caminha, D.O. & Andion, C. (2017). Por uma Sociologia da Ciência da Administração Pública no Brasil: Pontos de partida e uma nova perspetiva. Anais do Encontro Nacional de Ensino e Pesquisa no Campo e Públicas, 2(2), 1344-1369.
[6] Bourdieu, P. (1994). O Poder Simbólico. Difel.
[7] Raadschelders, J.C.N. (2009). Understanding Government: Four Intellectual Traditions in the Study of Public Administration. Public Administration, 86(4), 925-949.
[8] Teles, F. (2020). Public Administration in Portugal. In Bouckaert, G., & Jann, W. (Eds.), European Perspectives for Public Administration: The Way Forward (pp. 439-452). Leuven University Press.
[9] Raadschelders, J.C.N. (2011). The Future of the Study of Public Administration: Embedding Research Object and Methodology in Epistemology and Ontology. Public Administration Review, 71(6), 916-924.
[10] Hill, M.J. (1972). The Sociology of Public Administration. Weidenfeld and Nicolson.
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