A ciência é do povo? Citizen science, reflexões sobre o conceito e os processos científicos da produção da verdade num mundo cada vez mais inseguro e arriscado

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: A ciência é do povo? Citizen science, reflexões sobre o conceito e os processos científicos da produção da verdade num mundo cada vez mais inseguro e arriscado

Autor: João Lutas Craveiro

Filiação institucional: Laboratório Nacional de Engenharia Civil (Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais)

E-mail: jcraveiro@lnec.pt

Palavras-chave: Riscos ambientais, Participação, Citizen Science.

À medida que as ameaças ambientais se multiplicam à escala global exige-se uma mais apurada reflexividade sobre as práticas humanas, as formas de utilização dos territórios e seus recursos e a capacidade de previsão e resposta quanto a eventos ambientais extremos, socialmente disruptivos. Ora, é esta capacidade de previsão que a ciência experimenta em uma dimensão cada vez menos segura, entrando em crise os modelos causais e a pertinência do conhecimento empírico baseado em observações do passado, pois o futuro torna-se progressivamente mais incerto e ameaçador. Incerteza e ameaça que se antecipam em cada crise, sob a manifestação dos riscos ambientais [1]. Algumas destas manifestações tornam-se indetetáveis para os sentidos humanos, a não ser pela própria visibilidade das consequências. As comunidades humanas encontram-se, assim, cada vez mais dependentes da análise e do discurso da ciência para perceberem (mesmo que na impossibilidade de compreenderem com exatidão os mecanismos de exposição) os riscos a que estão expostas. A humanidade parece, pois, acossada numa estrutura medieval do medo, o medo do invisível, na emergência de um novo tipo de sociedade colonizada pelo medo e que dá lugar a todas as derivas políticas [2].

É neste contexto particular, embora não se possa ver aí uma resposta socialmente organizada, que a densidade das metodologias colaborativas e a urgência da ciência em envolver as populações, nos seus próprios procedimentos, assume maior acuidade. Refira-se, a propósito, também a consolidação de novos mecanismos de participação popular de que os processos de Avaliação de Impacte Ambiental foram, de algum modo e em particular em Portugal, precursores ou, no mínimo, impulsionadores [3].

Mais recentemente o conceito de Citizen Science, que se traduzirá aqui por Ciência dos (ou, melhor, para os) Cidadãos, inflama o carácter participativo socialmente abrangente.  Novos programas de financiamento europeu à investigação científica apelam, aliás, incisivamente ao conceito da Ciência para os Cidadãos como à participação das Ciências Sociais e Humanidades (é o caso do Horizon Europe [4]). Define-se o conceito como exprimindo o envolvimento intencional do público nos processos de investigação científica [5]. Em resumo, a ciência passa a dispor, sem grandes custos, do acesso a informação massiva (big data) voluntariamente enviada pelos próprios cidadãos. Acarreta também alguns constrangimentos, pois a Ciência para os Cidadãos só deve ser exercida se 1) o método de observação for relativamente simples, quer quanto ao que é observado quer quanto aos instrumentos usados na observação e registo; 2) o cidadão poder consultar, idealmente em tempo real, os resultados agregados dos diversos registos e 3) o objetivo da investigação estiver suficientemente claro para a compreensão dos participantes.

Além destas vantagens e constrangimentos populares, a Ciência dos Cidadãos parece reforçar a legitimidade do processo científico, legitimando por arrasto a verdade assim construída, como pode corresponder a um novo tipo de populismo: o populismo científico [6]. Se a palavra é, por excelência, o instrumento da demagogia política, como já o expressava Max Weber, o resultado de uma ampla participação popular dogmatiza a verdade coproduzida e reanima os dilemas entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade [7]. Afinal, nada de novo, a ciência usará os dados voluntariamente enviados pelos cidadãos para formatar uma verdade metodologicamente eleita ou, mesmo, previamente tida como conveniente (a ética da convicção) ou para potenciar sensibilidades ambientais e promover uma (cons)ciência cidadã. Contudo, quer num caso ou no outro, pode concluir-se que a decisão política permanece refém da quantidade e fiabilidade dos dados, e embora o público conquiste uma maior participação esta participação não pode confundir-se com capacidade de influência (Figura 1).

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Figura 1: A ciência e o poder, o poder da ciência nos processos de decisão política

Neste sentido, pode até paradoxalmente afirmar-se que quanto maior for a participação do público maior é a legitimidade da ciência para condicionar os processos de decisão. Não se pressupõe qualquer não benignidade da ação da ciência, mas a participação popular nos processos científicos não subverte o padrão da decisão política. Este padrão de decisão política, onde o decisor se escuda em relatórios técnicos, já foi largamente exercitado em Portugal, à medida que os mecanismos de consulta e audiência públicas se foram multiplicando (como nos casos dos processos de Avaliação de Impacte Ambiental já referidos).

Aprazivelmente, contudo, a Ciência para os Cidadãos tem até sido usualmente praticada para fins de observação de simples registos ecológicos. Parece mais complexo defender a sua aplicação nas ciências sociais, não apenas devido a que a observação de fenómenos sociais depende de uma delimitação dos próprios fenómenos que não é produto de uma condição física ou ecológica facilmente observável, mas socialmente orientada (observar o quê, quem observar e onde observar?) como acontece também que as ciências sociais sabem, ou têm a obrigação de saber, que o registo de observações e a participação voluntária não transforma o cidadão num cientista.

A ciência não é do povo, a ciência é dos cientistas que, apesar do argumentado em contra por Beck (op. cit.), preservam ainda o monopólio da verdade. Pelo menos, das formas metodologicamente válidas para a produção de uma verdade entendida sob a credibilidade da ciência. Mas, afinal, o que é a ciência? Pode dizer-se (parafraseando Thomas Kuhn) que a ciência é aquilo que os cientistas dizem que é.

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Notas:

[1] Entenda-se por crise uma «manifestação do risco que, até então, estava latente e, por conseguinte, poderia nunca manifestar-se, ou seja, nunca representaria perigo efetivo. Desta forma, o perigo está indelevelmente associado à manifestação do risco»: Lourenço, L. (2015). Risco, perigo e crise, Riscos e Desastres Relacionados com a Água. Editora Rima, São Paulo (p.4).

[2] Beck, U. (1992). Risck Society; towards a new modernity. Sage Publication, London.

[3] Craveiro, J.L. (1996). Estudos de Impacte Ambiental; uma contribuição sociológica – a emergência do Público nas Audiências. ICT Ecologia Social, ITECS 27, Edição Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa.

[4] Um dos projetos europeus em que participo pelo LNEC tem, aliás, como conceito-chave a Ciência para os Cidadãos: URL: https://www.c2impress.com/ [8 Mar 2023].

[5] Phillips, T.B., Ballard, H.L., Lewenstein, B.V. & Bonney, R. (2019). Engagement in science through citizen science: Moving beyond data collection Science Education, 103(3): 665–690. DOI: https://doi.org/10.1002/sce.21501 [7 Mar 2023]

[6] A par do populismo político da decisão amplamente participada, referendada e de tradução imediata e inequívoca da vontade popular. Também a ciência encontra a sua correspondência no imediatismo da produção científica e na expansão da sua base participativa.

[7] Weber, M- (1973), O Político e o Cientista, Editora Presença, Lisboa. Também o conceito de neutralidade axiomática é extremamente pertinente atendendo que a participação dos cidadãos no processo científico pode, afinal, cumprir o impraticável ou dar a ilusão que a ciência não se orienta por valores sociais, uma vez que a participação é aberta a qualquer cidadão anulando, pela densidade participativa, a oportunidade de um pequeno grupo condicionar a produção de resultados.

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