Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: Gentrificação urbana na cidade do Porto: um problema de saúde pública?
Autora: Ana Isabel Ribeiro
Filiação institucional: EPIUnit-Instituto de Saúde Pública, Universidade do Porto; Laboratório para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR); Departamento de Ciências da Saúde Pública e Forenses e Educação Médica, Faculdade de Medicina – Universidade do Porto.
E-mail: ana.isabel.ribeiro@ispup.up.pt
Palavras-chave: gentrificação, saúde urbana, geografia da saúde.
A saúde da população é moldada pelas características físicas e socioeconómicas dos locais onde os indivíduos habitam [1]. Essas características estão em constante evolução, e qualquer processo local, nacional ou transnacional que acelere as transformações territoriais pode, em última instância, acarretar importantes consequências para a saúde da população. Um importante processo de transformação territorial é a gentrificação urbana.
O que é a gentrificação e como se manifesta no Porto?
A gentrificação, termo introduzido pela socióloga Ruth Glass em 1964, é um processo que ocorre quando bairros historicamente empobrecidos experimentam uma revitalização económica que transforma as suas características demográficas, imobiliárias e comerciais, levando à chegada de novos moradores e/ou utilizadores economicamente mais favorecidos e à transição para uma população mais educada e rica, capaz de comprar imóveis novos ou renovados mais caros e ao mesmo tempo fomentar novas práticas culturais e de consumo, mudando por fim a identidade do território [2]. A gentrificação anda de mãos dadas com a relocalização, onde, face aos elevados custos de habitação nos territórios gentrificados, muitos moradores com menor poder de compra são empurrados para a periferia, onde os preços da habitação são mais comportáveis.
A gentrificação urbana pode ser catalisada por vários fenómenos. No caso de cidades do sul da Europa, como o Porto, os grandes catalisadores foram a “estudantização” (sobretudo com a entrada de alunos internacionais), a reabilitação urbana e, principalmente, a turistificação [3]. No Porto, só entre 2015 e 2022, os preços da habitação mais do que duplicaram [4]; o número de alojamentos locais aumentou de 464 para 7742 entre 2015 e 2020 [5]; e o número de passageiros desembarcados aumentou 165% entre 2010 e 2020 [6].
Apesar da definição original de Glass ser muito restrita e descrever essencialmente um processo de substituição dos residentes de classes populares por uma classe privilegiada (“gentry” em inglês), a gentrificação pode expressar-se de diferentes formas, tais como:
- Gentrificação comercial (quando os comércios locais encerram e abrem estabelecimentos direcionados para os novos moradores ou turismo).
- Gentrificação alimentar (quando o tipo de locais de venda de alimentos, o stock e os preços se alteram para ir ao encontro das preferências dos novos moradores, utilizadores ou turistas, frequentemente reduzindo ou condicionando o acesso aos alimentos dos antigos moradores).
- Gentrificação verde (quando a criação/reabilitação de espaços verdes leva a um aumento da desejabilidade e do valor de um determinado território).
No caso do Porto, a gentrificação parece manifestar-se sob as três formas descritas atrás, como se pode ver nas fotografias abaixo tiradas no centro histórico da cidade (Figura 1).
Figura 1 – Retratos da gentrificação na cidade do Porto.
LEGENDA: Cima-Esquerda – gentrificação alimentar (mercearia histórica, onde se vendiam frutas e legumes, substituída por um local de venda de produtos ‘pseudo-tradicionais’, nutricionalmente pobres, destinados ao turismo); Cima-Direita – gentrificação comercial (livraria histórica, antes de entrada gratuita e frequentada por moradores locais, transformada numa atração turística de acesso pago); Baixo – gentrificação verde (cobertura verde, um trabalho de requalificação urbana, que veio contribuir para a valorização desta zona da cidade).
Fonte: Tiradas pelo autor em junho de 2022.
E quais as consequências da gentrificação para a saúde?
Ao contrário de outras exposições ambientais (ex. insegurança, poluição), cujos efeitos adversos são praticamente irrefutáveis, a evidência sobre os efeitos da gentrificação urbana na saúde é escassa e divergente [7].
Sem querer ser exaustiva, com base na literatura atual, a gentrificação parece ter tantos efeitos prejudiciais como benéficos, que passo a sumariar. Alguns autores sugerem que os bairros gentrificados apresentam maiores níveis de eficácia coletiva (a existência de laços de cooperação e entreajuda entre residentes, contribuindo para alcançar objetivos comuns) [8], menos crime [9] e menor prevalência de hipertensão [10]. Pelo contrário, outros sugerem que a gentrificação e a relocalização constituem fontes de stress, insegurança residencial e pobreza, levando a pior saúde mental [11], consumo excessivo de álcool [12] e piores indicadores de envelhecimento saudável, como a solidão e a exclusão social [13]. Possíveis motivos para resultados tão discrepantes incluem o uso de diferentes desenhos de estudo e metodologias e o diferente contexto histórico e social – por exemplo, em alguns casos a gentrificação é catalisada por obras de reabilitação, noutros pela entrada de residentes da classe criativa/artística, o que poderá afetar de forma distinta a saúde dos moradores.
A Figura 2 propõe uma conceptualização de como a gentrificação urbana está associada à saúde, onde consideramos que esta afeta diferentes dimensões do ambiente residencial (físicas e socioeconómicas) e estas, por sua vez, afetam a saúde física e mental através de diversos mecanismos (ex. comportamentos, respostas psicológicas), sendo importante referir que esta influência pode ser moderada por fatores individuais (ex. idade, rendimentos) e contextuais (ex. políticas).
Figura 2 – Modelo conceptual sumariando a relação entre a gentrificação e a saúde.
Fonte: Adaptado de Bhavsar, Nrupen, Kumar, Manish, & Richman, Laura (2020) [14].
E como tem a gentrificação afetado a saúde dos portuenses?
Sabemos ainda muito pouco a este respeito, sendo fundamental investigar se (e como) os processos de gentrificação em curso estão a afetar a saúde da população portuense. Ancorado em metodologias qualitativas e quantitativas, o projeto HUG (financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia – PTDC/GES-OUT/1662/2020, CEECIND/02386/2018) prevê em breve ter respostas concretas sobre esta complexa relação entre a gentrificação e a saúde.
Notas:
[1] Ribeiro, A.I. (2018). Public health: why study neighborhoods?. Porto Biomedical Journal, 3(1): pp. e16.
[2] Anguelovski, I. et al. (2020). Gentrification and health in two global cities: a call to identify impacts for socially-vulnerable residents. Cities & Health, 4(1): pp. 40-49.
[3] Carvalho, L. et al. (2019). Gentrification in Porto: floating city users and internationally-driven urban change. Urban Geography, 40(4): pp. 565-572.
[4] Idealista (2022). Evolução do preço das casas à venda Porto, Disponível em [Consult. 6 julho 2022]: https://www.idealista.pt/media/relatorios-preco-habitacao/venda/porto/porto/.
[5] RNAL (2022). Registo Nacional de Alojamento Local. Disponível em [Consult. 6 julho 2022]: https://rnt.turismodeportugal.pt/RNT/Pesquisa_AL.aspx?FiltroVisivel=True.
[6] INE (2022). Passageiros desembarcados (N.º) nos aeroportos por Localização geográfica, Tipo de tráfego e Natureza do tráfego. Mensal – INE, Inquérito aos aeroportos e aeródromos, Disponível em [Consult. 6 julho 2022]: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&contecto=pi&indOcorrCod=0000862&selTab=tab0&xlang=pt.
[7] Schnake-Mahl, A. et al. (2020). Gentrification, Neighborhood Change, and Population Health: a Systematic Review. Journal of Urban Health, 97(1): pp. 1-25.
[8] Steinmetz-Wood, M. et al. (2017). Is gentrification all bad? Positive association between gentrification and individual’s perceived neighborhood collective efficacy in Montreal. Canada, International journal of health geographics, 16(1): pp. 24-24.
[9] Barton, M. (2014). Gentrification and Violent Crime in New York City. Crime & Delinquency, 62(9): pp. 1180-1202.
[10] Morenoff, J. et al. (2007). Understanding social disparities in hypertension prevalence, awareness, treatment, and control: the role of neighborhood context. Social science & medicine, 65(9): pp. 1853-1866.
[11] Lim, S. et al. (2017). Impact of residential displacement on healthcare access and mental health among original residents of gentrifying neighborhoods in New York City. PLoS One, 12(12): pp. e0190139.
[12] Izenberg, J.. Mujahid, M. & Yen, I. (2018). Gentrification and binge drinking in California neighborhoods: It matters how long you’ve lived there. Drug and alcohol dependence, 188: pp. 1-9.
[13] Santos, C.J., Paciência, I. & Ribeiro, A.I. (2022). Neighbourhood Socioeconomic Processes and Dynamics and Healthy Ageing: A Scoping Review. International Journal of Environmental Research and Public Health, 19(11).
[14] Bhavsar, N., Kumar, M., & Richman, L. (2020). Defining gentrification for epidemiologic research: A systematic review. PLoS One, 15(5): pp. e0233361.
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