A emergência de 2021

Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública

Título do artigo: A emergência de 2021

Autor: Francisco Louçã

Filiação institucional: Professor Catedrático de Economia – ISEG-UL

Palavras-chave: pandemia, austeridade, recessão.

Quando o mundo viveu a maior crise do século XX, a partir de outubro de 1929, o presidente norte-americano era Herbert Hoover e o seu ministro das finanças era o banqueiro Andrew Mellon. Conta Hoover nas suas memórias que Mellon lhe explicou que a melhor resposta ao colapso das Bolsas seria deixar falir a atividade económica para purgar a sociedade: “liquide-se o emprego, liquidem-se as ações, liquidem-se os agricultores, liquide-se o imobiliário. Isso purgará a podridão do sistema. As pessoas trabalharão mais, viverão uma vida moral. Os valores serão ajustados e as pessoas empreendedoras ficarão com os despojos das pessoas menos competentes”. Hoover conta ainda que Mellon terá insistido que “quando as pessoas passam por uma experiência de inflação, a única forma de a tirar do seu sangue é deixar colapsar (a economia)” e “mesmo uma situação de pânico pode não ser uma coisa má”. O presidente concordou e foi assim que a sua administração atuou: não fez nada. Um terço dos bancos foi à falência e o desemprego atingiu um em cada quatro trabalhadores. Esta é a solução liberal para uma crise, o mercado que funcione e enterre os seus mortos.

Quatro anos depois, Roosevelt foi eleito para fazer o contrário, controlar a especulação bancária e criar emprego. Essa passou a ser a receita recomendada para responder à crise. No final do século e no início do seguinte, no entanto, as soluções liberais voltaram a dominar, impondo os remédios do que se veio a chamar a “austeridade expansionista”: privatizar, garantir rendas financeiras e baixar o valor do salário e das despesas do Estado, incluindo as pensões. A troika e Passos Coelho foram os seus profetas entre nós.

O problema é ignorar o problema

A geringonça de 2015 reverteu essa política, gerando alívio na sociedade. Mas, quando chegou o momento de mudanças estruturais que anulassem os efeitos profundos da jaula troikista, o governo de António Costa virou-lhe as costas. Assim, Mário Centeno, ex-ministro das finanças e por ora governador do Banco de Portugal, veio explicar que “mais do que nunca, as novas políticas devem atuar na margem”, o que simplesmente reforça a sua doutrina anterior como ministro, ou seja, não façam nada que altere as regras estruturais que a troika deixou. Mas o curioso, na sua frase, é mesmo o “mais do que nunca”. Nunca e agora mais do que nunca? Agora que há 10% de desemprego e a subir, agora que teremos dois anos de queda do PIB, agora que temos danos permanentes na economia? Centeno explica-nos assim que, perante a crise, devemos fazer alguma coisa, ao contrário do que pensam os liberais, mas pouco, ao contrário do que propõe a esquerda. E foi esse o seu recado.

No escasso detalhe que indicou, o governador do Banco sugere deixar as empresas falirem e limitar o apoio ao emprego só a alguns casos. Tudo na margem. Convém reconhecer que o governo responde de forma diferente, aceitando que deve haver apoios (mas não pagou alguns dos que aprovou, como aos trabalhadores informais e às domésticas), que são urgentes (mas atrasa-os) embora, como Centeno, não aceite que se toque na lei laboral, ou seja nas regras para despedir ou para os contratos de trabalho. Tudo pela margem, portanto. A doutrina da margem é o que une os ministros das finanças, Centeno e Leão.

É para empurrar as soluções para a margem que o governo nem aceita normalizar as relações de trabalho nem um investimento estrutural no SNS, aumentando o número de profissionais de saúde. Prefere comprimir as despesas de resposta à crise em soluções temporárias, que possam ser cobertas pelos fundos europeus de emergência, aceitando a estratégia de reduzir o défice com novas restrições em 2022. Ora, pouco agora e menos no ano seguinte é uma solução para desastre.

Tempo para ter cuidado

Há duas razões para fazer mais e para fazer já. A primeira é que a crise é estrutural: qual é a dúvida de que alguns setores não recuperarão em 2021 e que o desemprego aumentará? É também estrutural nos serviços públicos, em particular no SNS.

Há ainda uma segunda razão para agir depressa, e são os riscos internacionais. E são cinco: o Brexi, o veto da Polónia e Hungria ao pacote de subsídios aos estados pelo esforço de 2020, as eleições na Alemanha em 2021, a crise política na transição da Casa Branca e, ainda, o enigma financeiro. Deste último tem-se falado menos, os índices bolsistas vivem deslumbrados pelos máximos históricos, que provaram ser imunes a Trump e à pandemia. Mas Robert Shiller, Prémio Nobel da Economia em 2013 e uma voz que costuma ser solitária mas certeira, veio há um mês recomendar prudência: “A crise do coronavírus e as eleições de novembro elevaram os receios de uma grande crise bolsista aos níveis mais altos de muitos anos. Ao mesmo tempo, o valor das ações está no máximo. Esta combinação volátil não significa que vá haver um colapso bolsista, mas sugere que o risco disso acontecer é relativamente grande. Este é um tempo para ser cuidadoso” (23 de outubro, New York Times). Nota Shiller que só em 1929 e 2000 é que houve um tão grande desvio entre a capitalização e os lucros das empresas, e que isso indica uma bolha que pode explodir.

Assim, esperar é imprudente, o tempo não é bom conselheiro. Aliás, os números são chocantes: ao chegar ao fim do ano, as previsões antecipam uma queda do PIB mundial de 4% e, para Portugal, o ano de 2020 registará um efeito recessivo mais grave do que durante todo o período acumulado da troika. O mundo vive a maior recessão desde o fim da Segunda Guerra. Os cenários curtoprazistas são, portanto, imprudentes e, aliás, estão agora a dar lugar ao cinismo: não houve destruição criativa, queixa-se um analista, que pena não ter havido falências em catadupa para estimular o mercado. John Cochrane, um monetarista radical da Hoover Institution, propõe que “se deixe os bancos falir, de forma ordenada. As pessoas, computadores, edifícios são vendidos a novos donos, com novo capital, e o negócio continua como sempre”. Não vai tudo continuar como dantes, mesmo que haja o risco de se repetirem os mesmos erros em que os decisores são vezeiros. Em particular, há três erros que devem ser evitados.

Primeiro erro: orçamentos curtos

O ano próximo, quando quer que as vacinas comecem a alcançar a maioria da população, será de desemprego e escassez de procura agregada. Na incerteza, só as políticas públicas podem corrigir a procura deficitária, razão para o FMI calcular um histórico multiplicador de 2,7 (um milhão de investimento público provoca um aumento de 2,7 milhões do PIB), e assim sustentar as redes sociais de proteção. Mas vão faltar recursos. A queda de receita de IVA e outros impostos pode alcançar os 10 a 20%, segundo as projecções das instituições internacionais, e em 2021 ficaremos longe do nível do produto de 2019.

Os fundos europeus poderiam cobrir uma parte dessa necessidade. O problema é que, embora ainda não se saiba como será resolvido o imbróglio com a Hungria e Polónia, mesmo no caso mais favorável esse contributo será atrasado (o empréstimo para despesas de layoff deveria ter vindo em junho e chegou no último dia de novembro) e é reduzido. Portanto, vai ser preciso contrair dívida, beneficiando dos juros negativos. O que o orçamento não pode é ser curto. Eis uma boa razão para um orçamento suplementar, para corrigir o já aprovado, que é estruturalmente contraccionista. Não haverá uma segunda oportunidade para responder a tempo aos problemas sociais imediatos.

Segundo erro: especular

Se sair do mundo real e ler as notícias das bolsas, notará a euforia. O índice S&P500 subiu 13% em novembro, um mês de rios de leite e mel, e as principais bolsas europeias incharam em 21%. Se alguém ainda tem dúvidas sobre esta anomalia, é melhor tomar atenção: a bolha concentra-se nas empresas que fizeram e farão grandes lucros, como as de comunicações, de publicidade (a Google e o Facebook), de gestão de dados e de informação. As bolsas estão intoxicadas com boas notícias e assim vão continuar. Como escrevia um economista do século XIX, se o lucro de uma operação for 10% haverá alegria, se for 20% será a loucura.

Ora, a euforia é ignorante. Na incerteza atual, já se registam três a dez vezes mais incumprimentos de hipotecas, o que pesa nos balanços dos bancos, e o efeito de arrastamento em 2021 será maior. As provisões têm crescido, os bancos procuram fusões desesperadas, mas nada disso evita que nasça um mundo novo em que os principais poderes financeiros mundiais passam a ser agências de transferências e pagamentos, ou gigantes como a Apple. Mais uma vez, não há regulação financeira que os domestique. Vivemos há dez anos em bolhas financeiras e elas cobram sempre o seu preço.

Terceiro erro: ignorar problemas

Os restaurantes e o turismo vão reduzir-se por muito tempo. Por isso, haverá setores que não recuperam com a vacina. Como a economia portuguesa depende de alta intensidade de emprego em atividades com baixo valor acrescentado e vinculadas à procura interna, isso significa desemprego. Essa é, portanto, a prioridade, recuperar a procura que salva empregos.

O ano de todos os riscos, 2021, não deve ser o tempo de um ajustamento ligeiro. Temos que nos salvar da recessão e essa é a maior urgência democrática.

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