Contra-ciência e saúde. Pistas para uma investigação sociológica

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: Contra-ciência e saúde. Pistas para uma investigação sociológica

Autor: João Aguiar

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

E-mail: jaguiar@letras.up.pt

Palavras-chave: ciência, saúde, contra-ciência.

Nunca as sociedades foram tão vastamente marcadas pela ciência [1] como acontece na atualidade. Em termos de objetos do dia a dia, como telemóveis de última geração, aplicações informáticas, sistemas de navegação, medicamentos inovadores, não faltam exemplos da presença do conhecimento científico no desenvolvimento tecnológico e no quotidiano das populações. Mas o impacto da ciência vai muito além disso. Desde a colossal expansão de empregos com componente científica, desde meados do século passado, até à complexificação do que se poderão intitular de sistemas silenciosos de assistência à vida quotidiana (monitorização em tempo real dos transportes públicos, infraestruturas técnicas de suporte a serviços financeiros, comerciais, etc), sem esquecer a forma como perceções sobre o corpo humano ou a natureza derivam, nem que remotamente, do impacto do conhecimento científico. Mesmo num contexto socioeconómico que, em boa medida, continua a ser vulnerável e de risco em termos laborais [2], a verdade é que, no que toca a indicadores de saúde e bem-estar, até hoje nunca se viveu tanto tempo, com mais saúde e menos escassez [3]. Em suma, numa sociedade (crescentemente) complexa, o conjunto de metodologias e mecanismos de indagação do real e de elaboração de explicações sistemáticas dos seus padrões de articulação e funcionamento – a ciência – representa um vetor nuclear e imprescindível.

Mesmo assim, na modernidade, nunca o conjunto de movimentos e agentes contrários à ciência foi tão expressivo, como o que tem ocorrido no século XXI. Desde a homeopatia [4], a osteopatia [5], a acupuntura [6], o movimento anti-vacinas [7] ou a negação das alterações climáticas [8], surgiu nas últimas duas décadas uma constelação multiforme de práticas e movimentos que rejeita o conhecimento científico. Mais especificamente o conhecimento científico básico relativamente estabelecido, replicado e consolidado numa escala transnacional por décadas de pesquisa. Portanto, o denominador comum destes movimentos diversificados consiste num padrão de rejeição do conhecimento científico, com particular enfâse na saúde e nas ciências biomédicas.

Alguns autores têm designado esta amálgama de movimentos de pseudociência [9]. Contudo, na medida em que estes movimentos afirmam a sua identidade e legitimidade públicas numa base alternativa e, portanto, contrária à evidência disponível, à falta de melhor termo, chamar-lhe-emos contra-ciência [10]. Por outro lado, o facto de alguns destes movimentos pugnarem por teorias da conspiração em que a comunidade científica mundial estaria a mando de entidades ocultas e misteriosas [11] (Trudeau 2005; ProPublica 2014; Ridley 2015), a propósito de temas como pretensas curas e tratamentos ocultos ao grande público, aquecimento global ou vacinas, constitui mais um aspeto da sua oposição às instituições produtoras de ciência.

Com efeito, afigura-se como sociologicamente pertinente considerar a constelação de movimentos que se consideram alternativos e/ou contrários à ciência, podendo-se enumerar as seguintes estratégias, tendo em vista um estudo vasto e multidimensional deste fenómeno:

  1. a) Análise qualitativa às redes sociais, espaços por excelência de inserção e divulgação destes movimentos, tendo especial enfoque na identificação dos eixos temáticos evocados;
  2. b) Entrevistas a utentes de práticas ditas não convencionais, de forma a compreender as motivações, as crenças e as expectativas envolvidas na busca por aqueles serviços;
  3. c) Análise institucional/comparativa dos diferentes processos de regulação e aprovação de práticas e produtos (medicamentos versus suplementos);
  4. d) Análise quantitativa dos mercados de produtos e serviços destes movimentos e empresas;
  5. e) Análise da subpopulação que desenvolve práticas dentro destes movimentos e origem da sua formação académica. Complementarmente, e se possível, pode ser útil comparar, em termos de situação profissional, esta subpopulação com os cientistas, que têm uma franja significativa de trabalhadores em condições de precariedade laboral;
  6. f) Análise da discrepante presença no espaço mediático da prática clínica baseada na evidência científica e as práticas ditas alternativas, especialmente em programas da manhã e da tarde de larga audiência. Por outro lado, afigurar-se-ia oportuno comparar a transmissão de documentários ativistas de movimentos contra-científicos, relativamente a documentários de base científica;

Em resumo, o impacto social e o caráter multifacetado da constelação de práticas contrárias à ciência na área da saúde surge como um objeto de estudo sociologicamente relevante. Em primeiro lugar, enquanto um contributo da Sociologia para as Ciências Naturais, tendo em vista uma melhor compreensão dos processos de produção de conhecimento científico e de como este vive atualmente numa situação concorrencial/conflitual com outras formas de informação/desinformação. Segundo, pela compreensão dos mecanismos ideológicos e de uma biopolítica naturalista que aparenta estar subjacente no seio da contra-ciência. Terceiro, pelo contributo para políticas públicas mais transparentes e enformadas em evidência científica robusta e testada empiricamente.

A ausência de estudos sociológicos em Portugal sobre esta temática justifica ainda mais a necessidade de se fortalecer os laços da Sociologia com o estudo da produção pseudo ou contra-científica.

Notas

[1] Fiolhais, Carlos; Marçal, David (2017) – A ciência e os seus inimigos. Lisboa: Gradiva

[2] Carmo, Renato; Matias, Ana (2019) – Retratos da Precariedade. Lisboa: Tinta da China

 [3] Rosling, Hans et al (2019) – Factfulness – Factualidade. Lisboa: Temas e Debates Pinker, Steven (2018) – O Iluminismo Agora. Em Defesa da Razão, Ciência, Humanismo e Progresso. Lisboa: Presença

Cerqueira, João (2018) – Estamos cada vez mais doentes? Não…não estamos… Scimed 16/11/2018, https://www.scimed.pt/geral/estamos-cada-vez-mais-doentes-nao-nao-estamos/

Kassebaum, Nicholas et al (2016) – Global, regional, and national disability-adjusted life-years (DALYs) for 315 diseases… Lancet  388: 1603–58 https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(16)31460-X/fulltext

[4] Ernst, Edzard (2010) – Homeopathy: what does the “best” evidence tell us? Med J Aust 192 (8): 458-460 https://www.mja.com.au/system/files/issues/192_08_190410/ern11179_fm.pdf

[5] Cerritelli, F et al (2016) – Osteopathic manipulative treatment in neurological diseases: Systematic review of the literature. J Neurol Sci. 2016 Oct 15;369: 333-341 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27653920

[6] NICE [National Institute for Health and Care Excellence] (2016) – Low back pain and sciatica in over 16s: assessment and management. NICE guideline [NG59] https://www.nice.org.uk/guidance/ng59/resources/low-back-pain-and-sciatica-in-over-16s-assessment-and-management-pdf-1837521693637

[7] The Economist (2019) – The campaign against vaccination. The Economist, Jan 2019  https://www.economist.com/europe/2019/01/19/the-campaign-against-vaccination

[8] Cook, John et al (2016) – Consensus on consensus: a synthesis of consensus estimates on human-caused global warming. Environmental Research Letters, Volume 11, Number 4 https://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/11/4/048002

[9] Marçal, David (2014) – Pseudociência. Lisboa: FFMS

[10] Wolin, Richard (2004) – The seduction of unreason. Princeton: Princeton University Press

[11] PROPUBLICA (2014) – How Big Pharma Holds Back in the War on Cancer. Daily Beast 23/04 https://www.thedailybeast.com/how-big-pharma-holds-back-in-the-war-on-cancer

Ridley, Matt (2015) – The climate change agenda is a conspiracy against the poor. The Spectator. December https://www.spectator.co.uk/2015/12/the-green-delusion/

Trudeau, Kevin (2005) – Natural Cures “They” Don’t Want You To Know About. Alliance Publishing.

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