Regularidade, alternância e rotatividade. É possível fugir ao Natal?

Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida

Título do artigo: Regularidade, alternância e rotatividade. É possível fugir ao Natal?

Autora: Rosalina Pisco Costa

Filiação institucional: Universidade de Évora & CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade

E-mail: rosalina@uevora.pt

Palavras-chave: Família, Mobilidade, Tempo.

O Natal move anualmente milhares de pessoas, presentes, milhas e dinheiro. Entre anfitriões e convidados, “driving home for Christmas” coloca em movimento uma trama complexa de materialidades, sentidos, emoções, memórias e imaginário. Proporciona – por vezes impõe – encontros familiares feitos de atmosferas e estéticas específicas: cores, sons, sabores, odores e texturas [1]. Ainda assim, são relativamente escassos e esparsos os estudos sociológicos sobre o Natal. Num estudo maior sobre os rituais familiares na contemporaneidade [2], a mobilidade veio a revelar-se como categoria heurística chave nos discursos em torno do Natal. Mesmo nos casos em que os indivíduos são anfitriões e recebem em suas casas os convidados, um certo sentido de mobilidade é essencial para entender o estado liminal desses encontros no espaço e no tempo. O Natal é mobilidade, implica mobilidades.

Todas as pessoas entrevistadas neste estudo celebram o Natal e celebram-no sempre, todos os anos. É “impensável” não celebrar o Natal, fazê-lo em lugares “comerciais”, “impessoais”, ou “longe da família”. Ao invés, o Natal corporiza a ideia de uma família: presente, passada e, em alguns casos, idealizada. Na descrição dos seus Natais, as pessoas entrevistadas tendem a reforçar a representação social em torno de um “momento de reunião familiar” por excelência, “a festa nobre da família”, um tempo de “convívio” onde “todos, pais, filhos e netos” se juntam em alegria.

A perspectiva emic colocada sobre um Natal universal, “festa da família”, em que a família “toda” se reúne contrasta, porém, com uma perspectiva etic. Entre casais relativamente jovens, com pelo menos um dos pais ou sogros vivos, a alternância dos locais de celebração entre “a família de um lado” e “a família do outro lado” faz com que esta ideia de reunião absoluta seja mais ideal que real [3]. E, paradoxalmente, esta constatação é tanto mais verdadeira quanto mais numerosa é a família, uma vez que mais difícil se torna a probabilidade de uma “reunião a 100%”. Em todo o caso, o Natal é mobilidade: ora se é anfitrião e recebem-se em casa pais, irmãos, cunhados, sobrinhos e eventualmente outros familiares ou amigos; ora se é convidado, e circula-se entre a casa de pais, sogros ou tios (no casos de os pais ou sogros eles próprios alternarem o local de realização). Ao Natal subjazem, então, os princípios da alternância e rotatividade, característica que mais rapidamente ajuda a desconstruir a imagem aparentemente estável e idealizada em torno da ceia familiar [4]: “um ano é num lado, outro ano é no outro”, “um ano em casa dos sogros, outro ano em casa dos pais”, “a véspera de Natal num lado e depois o dia de Natal no outro” ou “almoçamos num lado, jantamos no outro”.

A justificação para celebrar o Natal em alternância vem, em primeiro lugar, pela via da “justiça” e “igualdade” entre os dois lados da família. É para “agradar a todos”, nomeadamente à expectativa que pais e sogros têm de juntar as respectivas famílias e evitar que uns ou outros fiquem “chateados” ou “melindrados”, caso a opção recaísse sempre no mesmo lado. O alternar entre “o cá e o lá” é também uma forma de aliviar a carga de trabalho envolvido. O Natal “é trabalho” e “implica trabalho”, como denota o indicativo dos verbos escolhidos para o descrever: antes é o “pensar”, “organizar”, “preparar”, “desarrumar”, “cozinhar”; no final o “lavar”, “guardar” e “arrumar”. O “não ser sempre em casa da mesma pessoa” faz com que se “dividam as coisas”, de tal forma que ninguém fique prejudicado. Passar “sempre” o Natal em casa de um dos lados é situação excepcional e, pelo avesso, ajuda a compreender a força do ritual: porque determinada casa “tem menos condições” para acolher o Natal, porque a família de um dos lados “não liga muito ao Natal”, porque “não tem o hábito de comemorar”, ou ainda porque é “demasiado pequena”. Nestes casos, por exemplo entre famílias de filhos únicos, é frequente os pais agregarem-se ao Natal “do outro lado” para que não fiquem sozinhos.

A mesma ideia de um Natal alternado passa para as situações de separação ou divórcio. As opções são muito diversificadas, sendo transversal a preocupação de que pais e mães possam usufruir, de modo equitativo, da presença dos filhos neste momento do ano considerado especial. Em alguns casos, a regra da alternância no Natal entre pais divorciados surge subordinada ao princípio do “melhor Natal” possível para as crianças. Ou seja, os pais parecem dispostos a abdicar da presença dos filhos, caso reconhecem que “lá”, com o ex-cônjuge, os filhos podem experienciar um Natal “melhor”, “mais confortável”, “mais verdadeiro”, “mais em família”.

Vivida entre a antecipação, a idealização e o stress [5], a caminhada para o Natal não deixa de ser sociologicamente previsível. É admitido, ad-hoc, que o Natal é para celebrar e que se celebra em determinado local. Seja porque é “sempre aí”, seja porque “é rotativo” e será “noutro local”. Num e noutro caso, “não há propriamente um convite” e “já toda a gente sabe onde é”. No final, surgirão as narrativas sobre o “cansaço” e “incompletude” face à não concretização do ideal da “verdadeira” reunião familiar. Mas são justamente as muitas descoincidências entre o Natal antecipado e o experienciado que servirão, elas próprias, para continuar a alimentar a representação social de uma celebração em torno de uma família estável, numerosa e feliz, que se reencontra e reúne ano após ano. Ao mesmo tempo, continuarão certamente a suscitar a curiosidade e a imaginação sociológicas.

Notas

[1] Mason, J. & Muir, S. (2013). Conjuring up Traditions: atmospheres, eras and family Christmases. The Sociological Review, 61(3), pp. 607–629

[2] Costa, R. P. (2011). Pequenos e Grandes Dias: Os Rituais na Construção da Família Contemporânea. Tese de Doutoramento em Ciências Sociais – Sociologia Geral. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. http://repositorio.ul.pt/handle/10451/4770

[3] Gillis, J.R. (1996). A world of their own making. Myth, ritual, and the quest for family values. Cambridge: Harvard University Press.

[4] Caplow, T. (1982). Christmas Gifts and Kin Networks. American Sociological Review, 47(3), pp. 383-392.

[5] Pleck, E.H. (2000). Celebrating the Family. Ethnicity, Consumer Culture, and Family Rituals. Cambridge: Harvard University Press.

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