Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida
Título do artigo: Velha Infância
Autor: Carlos Mendes Rosa
Filiação institucional: PUC-Rio
E-mail: carlosmendesrosa@gmail.com
Palavras-chave: Envelhecimento, território, subjetividade.
Afonso sempre adorou sua infância.
Sua vida pode se resumir em uma palavra; “brincar”. Não há nada atualmente que venha lhe preocupar. Lembra-se de ter escutado alguém afirmar que “crianças não tem preocupação, só tem coisas boas para pensar e lembrar”. E que delícia era a lembrança daquele passeio com sua mãe na cachoeira, quando viu o arco-íris se formando na água pela primeira vez. O primeiro presente que se recorda de ter ganhado; uma sacola com bolinhas de gude dadas pelo seu pai. E aquela amiguinha que conheceu na igreja, Sandra – a menina de cabelos encaracolados, com quem passara muitas tardes comendo bolo de chuva e contando nuvens. Pena que não a via mais, pois ela mudara de cidade.
Afonso não tem que ir a escola, por isso passa horas em frente à televisão.
Algo curioso dessa época da vida é que a fantasia se mudou para uma casa bem próxima à residência da sua amiga realidade. Elas passam a conviver mais intimamente; se encontram várias vezes ao longo do dia. É nesses momentos que os personagens dos programas de televisão vêm para a sala da casa de Afonso brincar e conversar com ele. Alias, são as melhores companhias que ele poderia ter, bem diferentes dos outros moradores regulares da sua casa. Pois enquanto os primeiros são sempre alegres, divertidos, entendem tudo o que ele fala e estão sempre disponíveis, os últimos parecem carregar o mundo nas costas, raras vezes dão um sorriso e nunca têm tempo para conversar com ele.
Nos dias em que está mais compenetrado, olha as misérias do mundo da janela de sua TV e fica pensando em planos para mudar o rumo das coisas… Mas isso só caso ele aguente estar entre os adultos. Entre um programa e outro adora “desenhar” nos papéis que ficam sobre a mesa da sala de estar.
– Não sei por que você faz esses rabiscos todos os dias – lhe diz Jucélia – a empregada – que não obstante o mau humor vive lhe trazendo canetinhas coloridas.
A mesma Jucélia, em meio aos afazeres domésticos, observa Afonso com rabo de olho para prevenir que ele apronte alguma. Chama a sua atenção o fato dele ficar sentado, imerso em seus próprios pensamentos, alheio de todo o resto do mundo. E o mais curioso, pensa ela, é que ele fica lá com uma carinha boa, “deve de estar feliz o danadinho…”
É verdade que Afonso dá muito trabalho em casa. Sempre ouve as pessoas reclamarem das peripécias que ele vive fazendo. Essa semana mesmo, resolveu sair sozinho para “dar uma volta” e pôs a casa inteira atrás dele pelas ruas do bairro. “Não sou um prisioneiro” – disse àqueles que o resgataram. Também não gosta muito quando lhe ajudam a tomar banho e tampouco que lhe façam o seu prato de comida, mas chegou à conclusão que é melhor isso aos gritos quando “algumas migalhas” caem no chão. Apesar de tudo sente-se muito contente por ter quem cuide dele.
Todos concordam que ele sempre foi um menino, irradiando uma inocência e tranquilidade contagiantes.
Tem verdadeira paixão pela música. Aguardava ansioso as serestas de seu pai, chamando os vizinhos para uma roda de cantigas. “Serra da Boa Esperança” sempre foi sua canção favorita! Adorava escutar seu pai cantá-la ao violão. Em sonhos se vê como adolescente, cortejando uma bela moça no portão de casa. Acorda com saudades “não sei de que”. Às vezes, sonha estar casado e com três filhos… Sonha que seus filhos estão crescendo e deixando a casa; não gosta muito dessa parte.
Queria poder sair mais de casa, para fazer novas amizades, conhecer pessoas. Nesses últimos tempos só pode contar com a companhia de um coleguinha de brincadeiras que vem visitá-lo nos fins de semana. É o João, um menino gorducho com sete anos e muita disposição para correr, quebrar carrinhos e brincar de esconder.
Uma pena que agora chegara a hora de seu melhor amigo ir embora. Ele se despede com tristeza: – Até mais João.
Ao que o garoto responde: – Tchau vovô.
– Oi Pai, tudo bem? Acena-lhe do carro um homem que ele não consegue se lembrar quem é… Ah! Sim! É o pai do João!
A velhice se configura como um processo, que possui muitos preconceitos associados ao que representa, os quais se expressam em várias atitudes do cotidiano como a exclusão social do idoso, o apagamento subjetivo, o desinteresse pela história de vida e o medo do contato dos mais novos (especialmente das crianças) com a velhice, devido a sua estreita vinculação com a figura da morte (Vilhena et al, 2014).
Também devemos considerar que esta fase da vida, apesar das possibilidades de bem viver, largamente exploradas pela propaganda consumista, ainda possui uma grande carga de dificuldades e fragilidades, com as quais o sujeito idoso precisa lidar (Bosi, 1983). A marcha inexorável do envelhecimento biológico, muitas vezes vem acompanhada de disfunções fisiológicas, uma progressiva perda das funções executivas e de prejuízos da cognição, especialmente nos casos de demência, como o personagem de nossa trama ficcional.
Se levarmos em conta que o território é um grande agenciador de subjetividades, não podemos nos furtar a olhar detidamente para o fenômeno do envelhecimento e suas particularidades, uma vez que o país nunca teve tantos velhos e a porcentagem dessa faixa etária em relação às demais nunca foi tão expressiva (18% do total). Portugal é hoje, mais do que nunca, um país de velhos, e um território envelhecido.
No momento em que a velhice ganha novos campos de circulação nas diferentes esferas sociais, tais como o mercado com suas ofertas de produtos e serviços específicos para este público, o estado de direito com leis e estatutos, a ciência através da geriatria e da gerontologia, ainda parece existir uma cegueira por parte da maioria da população, quando o assunto são os velhos e suas singularidades (Debert, 2004).
Então, vamos abrir essa caixa de pandora e pensar sobre a espinhosa temática do envelhecimento, seus estereótipos, rótulos, suas facetas e dramas vividos no contexto atual de nossa sociedade. Vamos permitir que nossas crianças acostumem o seu olhar à convivência com a velhice, para que eles (os infantes) quando chegarem à idade adulta, não carreguem todos os preconceitos que nós construímos e possam ter uma relação melhor connosco, os futuros velhos, do que nós conseguimos ter no presente imediato. Podemos!?
Referências
Bosi, E. (1983) Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Queiroz Editor.
Debert, G. (2004) A Reinvenção da velhice. São Paulo. EDUSP.
Vilhena, J., Novaes, J.V. & Rosa C.M. (2014) A sombra de um corpo que se anuncia: corpo, imagem e envelhecimento. Revista Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 17(2), 251-264.
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