Desvio, Rótulo e Estigma na Doença Mental

Dimensão analítica: Saúde

Título do artigo: Desvio, Rótulo e Estigma na Doença Mental

Autor: Joel Oliveira

Filiação institucional: Sociólogo

E-mail: jfp.oliveira@hotmail.com

Palavras-chave: doença mental, desvio, rótulo, estigma.

Émile Durkheim formulou uma conceção simultaneamente evolucionista e estatística, ao considerar como patológicos, numa determinada sociedade, os fenómenos sociais que se desviam da média [2]. Para Michel Foucault esta interpretação contém um carácter negativo e virtual. Negativo, porque analisa em função do padrão e do desvio e constitui-se como uma patologia, por isso, é vista como indesejada. Virtual, porque o seu conteúdo é definido pelas possibilidades e resulta da estatística de um desvio em relação média ou ao padrão [3]. Neste sentido, Talcott Parsons considera a doença como um desvio em relação à normalidade, o que implica o desempenho de um papel específico, o sick role. Este papel não constitui uma sanção, significa antes uma conduta para o retorno à normalidade. Segundo Parsons, as doenças não são simplesmente um fenómeno natural, porque a etiologia de muitas doenças resulta de motivações sociais, especialmente, no seu entender, as do foro psíquico onde os sintomas estão, frequentemente, associados a condutas do comportamento [7].

Tomemos o exemplo do estigma associado à esquizofrenia. Este estigma é vulgarmente superior, por exemplo, em comparação com a depressão. A comunidade tende a retrair-se e a recear a esquizofrenia, já a depressão é socialmente mais aceite e, por isso, caracterizada de uma forma menos negativa. Portanto, a normalidade está associada à estatística. O que torna normal ou anormal, entre a depressão e a esquizofrenia são, desde logo, os comportamentos diferenciados. Enquanto na depressão os comportamentos são geralmente vistos como não normais, mas que se aproximam mais da normalidade, na esquizofrenia são caracterizados constantemente como anormais, bizarros, perigosos, etc. [6]

Howard Becker interpreta o desvio como um comportamento que se afasta das normas admitidas por um determinado grupo. Uma norma é um preceito de conduta que corresponde a uma situação social determinada. Quando uma pessoa transgride uma norma acordada, transfigura-se num estranho ao grupo, um outsider. Todavia, o desvio não é simplesmente a qualidade do ato cometido por uma pessoa, é sobretudo uma consequência da aplicação, pelos outros, de normas e sanções ao/s infrator/es. O desviante é aquele ao qual o rótulo foi aplicado com sucesso. O comportamento desviante é aquele ao qual a coletividade atribuiu um rótulo. Logo, o desvio é uma propriedade não do próprio comportamento, mas da interação entre a pessoa que comete o ato e as pessoas que reagem a esse ato [1].

Os principais agentes de rotulagem são aqueles que representam as forças da lei e da ordem, isto é, o processo parte, geralmente, dos que detêm mais poder para os que têm pouco ou nenhum poder. Por isso, para Edwin Lemert o rótulo não só perturba a forma como a sociedade vê a pessoa, como também pode afetar a noção da própria pessoa sobre a sua identidade [5]. Por exemplo, a perceção que as pessoas portadoras de um diagnóstico de uma doença mental têm é, frequentemente, uma perceção de fragilidade. Sentem-se excluídas, sentem vergonha da sua situação, etc. Este facto remete-nos para a questão referida por Edwin Lemert em relação à interiorização do rótulo [5].

Segundo Erving Goffman as condutas desviantes são ações ou atributos pessoais referentes a qualquer membro de um grupo, comunidade ou sociedade, que desrespeitam um conjunto de normas e valores que são por si compartilhadas. Quando existem normas numa sociedade existe a manipulação do estigma. As pessoas tendem a esconder o «eu» precário e não se sujeitam ao insulto e/ou ao descrédito. Contudo, não podemos ter uma visão unilateral sobre esta matéria. Tanto a pessoa estigmatizada como a não estigmatizada são partes uma da outra. Se uma pode ser vulnerável a outra também. Logo, a sociedade estabelece meios para categorizar os seus membros. Quando alguém é apresentado a outrem, tende-se a percecionar a sua categoria, os seus atributos e a sua identidade social ou status social. Isto é, transformam-se estas perceções em expectativas normativas e exigências apresentadas de forma rigorosa. Assim, um carácter imputado a uma pessoa consiste numa identidade social virtual, enquanto os atributos e a categoria que tal pessoa possa conter constituem a identidade social real [4].

O conceito de estigma remete-nos para atributos negativos da identidade, atributos que, em quase todas as sociedades, levam ao descrédito. O estigma consiste numa relação entre o atributo e o estereótipo. Podemos referir uma dupla perspetiva do estigma: desacreditado, quando a pessoa estigmatizada tem a sua (ou suas) característica conhecível e evidente e já não a pode ocultar; e desacreditável, quando a pessoa não tem a sua (ou suas) característica estigmatizada evidente e consequentemente, pouco percetível, podendo ocultá-la. Podemos evidenciar, ainda, três tipos de estigmas: o primeiro diz respeito aos atributos físicos; o segundo tem a ver com as culpas de carácter individual, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício etc.; a terceira são estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contagiar, por igual, todos os membros de uma família ou grupo [4].

No caso de um diagnóstico de uma doença mental, o facto de estar submetido a um tratamento médico contínuo, não implica a sujeição expressiva ao rótulo e ao estigma. Ou seja, o seu estigma é ainda desacreditável. Neste caso as suas características, estigmatizáveis, ainda podem ser ocultadas e controladas. Porém, o facto de ter estado ou não numa situação de internamento muda substancialmente a forma como a pessoa pensa sobre si, mas também a forma como a sociedade a vê. O internamento pode abrir um processo de construção do estigma e de interiorização do rótulo, já que conduz a implicações sociais, não só pelo estigma que lhes proporciona como também pela desacreditação que lhes confere [6], isto é, o estigma desacreditado [4]. Portanto, se as situações de internamento ocorrerem de forma frequente e ao longo da vida, estas pessoas ficam impedidas de ocultar as suas características estigmatizáveis [6].

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Notas

[1] Becker, Howard (1966), Outsiders: studies in the sociology of deviance, New York, Free Press.

[2] Durkheim, Émile (1987), O Suicídio, Lisboa, Editorial Presença, 4.ª Edição, (Primeira edição 1897).

[3] Foucault, Michel (2008), Doença mental e psicologia, Lisboa, Edições Texto & Grafia.

[4] Goffman, Erving (1990), Stigma: notes on the management of spoiled identity, Penguin Books LTD, (Primeira edição 1963).

[5] Lemert, Edwin (1972), Human Deviance, Social Problems and Social Control, Englewood Cliffs, N. J., Prentice Hall.

[6] Oliveira, Joel e Augusto, Amélia (2012), “A doença mental enquanto vulnerabilidade à exclusão social: o caso da esquizofrenia e da depressão”, in MATOS, Alice Delerue e SCHOUTEN, Maria Johanna (orgs.), Saúde. Sistemas, Mediações e Comportamentos, Ribeirão, Ed. Húmus.

[7] Parsons, Talcott (1964), The Social System, New York, A Free Press Paperback, (Primeira edição 1951).

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