Dimensão analítica: Mercado e Condições de Trabalho
Título do artigo: Bem-vindos a Bordo
Autora: Inês Brasão
Filiação institucional: Instituto Politécnico de Leiria
E-mail: ibibrasao@gmail.com
Palavras-chave: trabalho, subalternidade gentrificação, memória.
Há já algum tempo que a cidade de Lisboa é conhecida por intervenções urbanísticas em bairros degradados. O Intendente e o Cais do Sodré representam, provavelmente, os casos de maior visibilidade e polémica. Desde então, um conjunto de reflexões multidisciplinares tem vindo a lume. Este artigo é o resultado da vontade de conhecer as pessoas que não passam nos neons das revistas que anunciam os novos espaços desses bairros. Não se trata de um exercício de nostalgia. As cidades mudam. Trata-se de um exercício de compreensão de lógicas sociais que estão debaixo de camadas panfletárias e não podem ficar à margem da política das cidades.
A passagem de “zona vermelha” a “passadeira rosa”, no Cais do Sodré, ocorreu há cerca de 3 anos. Na altura, um dos espaços de entretenimento baptizou-se com a palavra «Amor», a fim de prestar homenagem à “história do edifício e ao antigo quotidiano do Cais do Sodré, zona portuária frequentada por prostitutas e marinheiros” [1]. Um dos artigos de aclamação terminava com uma analogia entre a Pensão e o Barco do Amor: «Love, exciting and new. Come a board. We´re expecting you.»[2] Bem-vindos a bordo.
Passaram quase dois anos quando me decido por uma visita ao Cais do Sodré. Atravesso o espaço deserto que dá acesso aos bares. Daí a pouco encontro uma jovem de olhos ensonados. É Simone [3]. Tem a voz grave e acabou de acordar. Usa uma pochette cor-de-rosa. Diz que trabalha ali. Proponho uma entrevista e aceita, sem resistência. Passados alguns metros, adianta «Sou mulher da vida». Sentámo-nos no degrau de um prédio devoluto.
Simone tem 20 anos e mora na Trafaria. Começou “a andar na vida” com 16. A mãe está de baixa e o pai, jardineiro, sem trabalho. Simone tem o 12º ano concluído. Diz-me sobre os tempos de escola: “estive em Colégios. Estive em Ourém, estive em Setúbal, estive em Almada e ao pé do Porto.” E que colégios eram? «Internos. Foi a segurança social que me meteu lá». E passaste por tantos sítios diferentes? «É que eu não gostava de estar lá. Eu era revoltada, batia nas pessoas (…) Desde miúda» (ri-se). «Eu é que me meti nisto. Os meus pais não sabem que eu ando aqui. Eles às vezes desconfiam onde é que eu páro estas horas todas mas nem sequer perguntam onde é que fui». Perguntei a Simone quando se tinha decidido por este trabalho. «Eu decidi quando tinha 16 anos. Eu decidi que precisava de trabalhar mas, como está mau para os patrões pagarem…» Depois contou-me que não tinha qualquer apoio e apontou: «É essa aí que tem as janelas abertas.A gente fica aqui as horas que a gente quer. Eles têm que perceber que a gente também temos que dormir. Às vezes aparecem pessoas que querem e já estamos no décimo sono». Perguntei-lhe como era a relação com os clientes: «A gente já conhece as pessoas. Eles é que têm o nosso número de contacto». E não aparecem desconhecidos? «Aparecem «camones», sim, mas a gente como já sabe que eles são camones, é pra esquecer. É porque para além de a gente se meter com eles, eles nem sequer passam cartão à gente. (…) Eu sou a mais nova aí. Eu sou a mais nova. Eles vêm ter com a gente, perguntam quanto é que queres e por isso vão lá para cima. E depois a gente fica uma hora. Aquilo que eles nos pagarem, a gente faz. Se eles pagarem pouco, a gente nem sequer – nem sequer – faz aquilo que eles querem. Aqui há muita mulher na vida. Aqui, só no Cais do Sodré, estão 14 mulheres. Só aqui. São 10 quartos para 14 mulheres, vê lá! Tem lá uma senhora mas essa senhora tem a vida dela. Quis mudar o rumo da conversa e perguntei-lhe como via a sua vida, no futuro. «Eu nem sequer penso.» Nesta altura Simone fez um silêncio prolongado. Depois, disse-me: «Aquela [mulher, colega de trabalho] já está para ali a chamar-me «chiba». É assim: eu agora vou ali para a parede». (Ouço um grito “Oh Chiba!!” – dirigido a Simone). Será melhor parar a entrevista? Pergunto. «Não, é que ela está a «entrar». Ela está com raiva. Tá com raiva. É por isso que ela está a dizer que eu tenho a língua comprida mas eu, a elas, esquece que eu lhe dou. Ela é que, quando está ali, está sempre com a chungaria. Tá-me a chamar. Mas é mentira. É só para eu sair daqui. Eu vou lá».
Simone afastou-se para ir ter uma conversa na esquina com duas mulheres mais velhas. Voltei a encontrá-la meia-hora depois e sugeri uma troca de números de telefone, que aceitou. No último olhar, depois de lhe agradecer, piscou-me o olho. Nos telefonemas seguintes, Simone atendeu como se se tratasse de um cliente e reagiu mal à minha voz. A segunda vez que tentei falar-lhe, exigiu que a deixasse em paz para sempre.
Simone é uma prostituta dos dias de hoje: não é um resto de memória. A sua vida profissional está a começar mas, porque a cidade e a urbanidade são um tal complexo de sentidos e ambiências que nem todos surgem com a mesma transparência, a casa de quartos de prostituição, onde é preciso partilhar camas e corredores, fica ao lado da representação e figuração daqueles que investem na “velha” memória do Cais. A reconstrução política e turística dos lugares expõe, muitas vezes, esse confronto entre condições sociais extremamente desiguais, e com desigual capacidade para se imporem como imagem do real. São muitas as contradições no testemunho de Simone mas, sobretudo, podemos pensar sobre o que fica por dizer em face do medo de ser repreendida na casa onde trabalha. Podemos apenas adivinhar as ameaças que foram feitas em caso de denúncia. Podemos adivinhá-lo pela agressividade e pela mudança de registo e pela forma como desapareceram da rua as mulheres que nos vigiavam, em defesa do seu próprio trabalho, pelos códigos de alerta. Podemos ainda adivinhá-lo porque foi necessário regressar à parede, o espaço permitido e o espaço de visibilidade, o espaço de mercado. A vida de profissional de Simone está agora a começar e a condição de novata exige o conhecimento «das regras do jogo». A precariedade do seu estatuto é muito evidente, o jogo de vida dupla é exigente e tenso, e havia uma dormência que toldava os olhos naquela manhã de Simone.
Notas
[1] http://www.lifecooler.com/artigo/fazer/pensao-amor/430904/
[2] http://fugas.publico.pt/RestaurantesEBares/296784_a-pensao-amor-vai-revolucionar-o-cais-do-sodre
[3] Nome Fictício
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