As coletividades desportivas e a democratização de um desporto em festa

Dimensão analítica: Desporto

Título do artigo: As coletividades desportivas e a democratização de um desporto em festa

Autor: Pedro David Gomes

Filiação institucional: CES – Universidade de Coimbra.

E-mail: pedroddg@gmail.com.

Palavras-chave: Associativismo, Clubes Desportivos, Jogos Desportivos, Cidades.

A partir do final dos anos oitenta, observou-se um processo de redefinição das lógicas de funcionamento do campo desportivo. Mais incisivamente nos principais escalões e nos grandes clubes, assiste-se à progressiva subordinação a uma racionalidade mais «economicista» e mais próxima dos princípios da nova gestão empresarial do que dos de matriz associativista. A incorporação de regras e conceções mercantilistas acalentava o propósito de melhor servir os objetivos da alta competição, do “desporto espetáculo”, atraindo outros investimentos como fonte de retorno e chave para um progresso (discutivelmente) sustentável. A fusão entre os objectivos do clube e da empresa foi amparada por toda uma disposição: desde as políticas públicas, aos media, até à jurisprudência empenhada em «possibilitar ao [clube]a capacidade de captação dos meios indispensáveis à sua sobrevivência económica» [1]. Legitimou-se, assim, a época dos grandes eventos, da “nossa capacidade organizativa”. Com efeito, à ideia de deixar a sua marca na cidade, o autarca focaliza-se no marketing da sua cidade, na criação de um cartão de visita eventualmente associado a um emblema, a um estádio, a um evento desportivo.

Por outro lado, a assunção deste «pendor empresarial deveu-se em larga medida à atitude dos poderes públicos perante o associativismo» e que se traduz, grosso modo, na «invasão do social pelo económico»[1]. Atitude, leia-se, de desconsideração, comum em certa opinião pública, que se reproduziu de duas maneiras: primeiro, na noção do associativismo desportivo como desadequado ao espírito do tempo, anacrónico nas suas práticas com a dinâmica concorrencial; e, apesar da herança do voluntarismo (ou talvez também por isso), na visão de um corpo dirigente desqualificado para assimilar o conhecimento técnico especializado, os inputs das assessorias e o appeal das relações públicas; em segundo lugar, essa atitude reproduziu-se no desinvestimento, na burocratização do acesso a apoios estatais e na quebra de fontes de receitas de um universo de pequenos clubes, constituintes basilares do tecido sócio-desportivo nacional. Vingou, enfim, um modelo que, muitas vezes vivendo acima das suas possibilidades, mostrou, entretanto, dar sinais de que se terão atingindo muitos dos seus limites.

Conjugada com as transformações urbanas e uma evolução sociodemográfica pouco favorável em determinados bairros que os viram nascer, a vitalidade de muitos destes clubes foi definhando, ao ponto de abandonarem as suas modalidades de eleição, de terem de “emagrecer” os escalões formativos e perderem um rol de convivências agregadoras do associativismo, raramente tidas na avaliação da qualidade desportiva da instituição. Noutros casos, reinventados às vezes os seus usos e sociabilidades, os clubes resistem e progridem. Na emergência dos desafios presentes, poderá a história do movimento associativista popular apontar caminhos para a efetivação do direito à prática desportiva? Resgatamos dois casos que convidam a desabotoar o colete de forças da austeridade – que constrange, também, a autonomia das federações e do poder local – e a combater pela preservação da universalidade e diversidade democrática no desporto.

No quadro de um regime político adverso a manifestações associativistas independentes, surge, em 1964, um grupo de pessoas, liderado por Augusto Valegas [2], motivadas em corresponder, por autoiniciativa, aos anseios desportivos da população. Ligadas às coletividades locais, relativamente à margem da alçada do Estado central, organizaram os Jogos Juvenis do Barreiro (JJB), com várias edições anuais. Não obstante as restrições à sua continuidade colocadas pelo governo (atento aos oposicionistas que pudessem conspirar nestas coletividades), o movimento, que propunha suprir a falta de ocupação dos tempos livres no período de férias, corporizou um reivindicar da democratização da organização e prática desportiva. Jovens de ambos os sexos (alguns também como coorganizadores), afetos a 62 clubes e dispersos por 20 modalidades, participaram em jogos que decorriam simultaneamente nos ringues, salões e pavilhões da cidade. O apoio pontual da Câmara Municipal, dos CTT, de algumas Federações e Associações Regionais, e o envolvimento de outras coletividades, como o Teatro e rádio locais, puderam sustentar o êxito alcançado. Em 1967, decorrente do corte nos subsídios do Fundo do Fomento do Desporto (um ano antes), os JJB seriam integrados nas Festas Populares da Vila. Durariam até 1974, sendo interrompidos em 1969 por causa de nova tentativa de ingerência dos organismos oficiais na sua organização [3]. Os JJB permitiram assim colocar em causa as ideias da massificação da prática desportiva dependente do topo da hierarquia, da (suposta) falta de cultura desportiva dos portugueses e do poder simbólico do desporto. O formato inspirou outros organizadores, tendo-se alastrado a Lisboa. Logo em 1966, o Clube Atlético de Campo de Ourique lança os «I Jogos Juvenis de Lisboa», suspensos pouco tempo depois, por determinação da Direção Geral dos Desportos. O legado foi finalmente recuperado, já nos anos oitenta, com alguma evidência dentro do perímetro das autarquias da Área Metropolitana de Lisboa [4].

Na capital, os «Jogos Desportivos da Cidade de Lisboa» tiveram a sua primeira edição em 1986/1987. Antes da edição seguinte, a Direção Geral dos Desportos  coloca entraves, ao duvidar da vocação e competência das Câmaras para organizar atividades desportivas. Sem comparticipação financeira do Ministério da Educação, ou promoção televisiva, a “festa do desporto” – cuja fase final passou a integrar as Festas da Cidade – foi envolvendo cada vez mais modalidades, atividades paralelas, uma variedade inaudita de equipas (de diversas origens sociais e geográficas; muitas criadas apenas ad hoc) e grupos etários: dos escalões de “passarinhos”, até aos escalões “veteranos para cima” de 40 anos [5]. De cerca de 3 mil praticantes em 1990 evoluiu para os 30 mil em 2001, sendo interrompidos um ano depois.

Em ambos os Jogos sublinham-se dois aspetos centrais:  souberam sobrepor-se ao conflito com as estruturas dominantes do poder central e permitem repensar formas de democratização da prática desportiva como um fim em si mesmo. Nesta linha, apontam para políticas que revitalizam o tecido associativo com base em lógicas participativas e cooperantes, viradas para a potencialização das infraestruturas desportivas e para a reapropriação do espaço público das cidades. Apontam também para o fomento da intersecção de vários tipos de conhecimento na  gestão desportiva; e ilustram a importância de critérios extradesportivos como a oferta cultural, formativa, recreativa e o contributo destes espaços para a vida e satisfação das necessidades das suas comunidades.

Num país com um parque desportivo mais descentralizado e desenvolvido por comparação ao passado, a resposta face ao paroxismo que enferma a visão economicista como solução dos problemas financeiros que assolam o desporto e o país deverá passar por aqui: desportistas, associados, coletividades, técnicos, vereadores e demais especialistas colaborando no sentido de reaproveitarem as infraestruturas para múltiplos usos na ótica de um deporto inclusivo, agregador e acessível, em contraste com a política dos multiusos exclusivistas.

Notas

[1 ] Melo de Carvalho, O Clube Desportivo Popular, Porto, Campo de Letras, 2001: 113.

[2] Augusto Valegas era empregado de escritório da Companhia União Fabril (C.U.F.) e foi também Presidente do “Luso Futebol Clube”.

[3] Cf. Augusto Valegas, Os Jogos Juvenis do Barreiro – obra social e desportiva, Montijo, 1970.

[4] Em iniciativas idênticas: as Seixalíadas, os Jogos da Cidade de Lisboa, as Olimpíadas nos Municípios do Alentejo, os Jogos do Mar de Sesimbra, os Jogos da Paz de Loures, os Jogos Juvenis de Gaia, e outras organizações semelhantes em Almada, Barreiro, Moita, Palmela (Jogos Desportivos Escolares), Amadora, Sintra, Oeiras, Vila Franca (XiraCup), Sines, Santiago do Cacém e Grândola, para nomear algumas. C.M.L., 4º Jogos Desportivos da Cidade de Lisboa – 1990, Câmara Municipal de Lisboa, 1991: 5.

[5] Caso do Andebol. Em Regulamento geral e regulamento específico dos 10º Jogos de Lisboa, 1996.

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