Correr com a troika: sobre os usos de uma história do atletismo

Dimensão analítica: Desporto

Título do artigo: Correr com a troika: sobre os usos de uma história do atletismo

Autor: Rahul Kumar

Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais – UL

E-mail: rahul.m.kumar@gmail.com

Palavras-chave: Atletismo, Estado Novo, Democracia.

Se por vezes é difícil sustentar uma causalidade política para o desenvolvimento do desporto em Portugal, alguns dos efeitos da transformação operada com a Revolução de Abril não podem ser subestimados. Melo de Carvalho, Director-Geral dos Desportos, entre 1974 e 1976, sintetizou na obra Desporto e Revolução as opções então em confronto: “Na verdade duas grandes vias se abrem, actualmente para o desenvolvimento desportivo português: aquela que defende que o problema básico é de natureza económica (na medida em que ele assenta, antes de tudo, na existência de estruturas materiais a construir pelo Estado, e no pagamento daqueles que tornam possível a prática do desporto) e uma outra via que se lhe opõe, defendendo que a exigência de meios económicos como a única via de solucionar os problemas desportivos é anti-democrática no momento presente.” Por democratização entendia-se, como Melo de Carvalho mais tarde clarificou, “o processo que possibilita, simultaneamente, o acesso do maior número a uma prática, a sua intervenção na gestão desse processo e a elevação da sua capacidade em compreender o significado do que faz”. [2]

Entre 1974 e 1975 o corte com a anterior política foi claro. Ao Estado Novo, e apesar do que assegura a caução do senso comum, mais do que o espectáculo desportivo, interessava sobretudo o desporto capaz de produzir corpos aptos para o trabalho, obedientes perante a voz de comando da hierarquia política. Ao desporto competitivo e espectadorizado opôs-se, durante décadas, uma visão higiénica e disciplinar das práticas físicas atléticas. Entre o discurso e a prática do regime encontrava-se, todavia, um hiato intransponível. Mesmo com a criação, na década de 1960, dos planos de fomento gimnodesportivo, financiados por receitas provenientes das apostas mútuas desportivas, não foi possível, até 1970, equipar todas as capitais de distrito com um pavilhão gimnodesportivo e uma piscina. Também no plano do desporto escolar o fracasso foi manifesto. Nessa mesma época, o aumento lento e gradual dos índices de escolarização possibilitava, pela primeira vez, o desenvolvimento de um programa alargado de educação física escolar. A urgência desse desígnio esbarrava, contudo, na inexistência de um número suficiente de “agentes de ensino de educação física”. Apesar do crescimento sustentado do número anual de licenciados pelo INEF. [3] o rácio professor/aluno aumentou sistematicamente desde 1952-53, ano em que existia um professor para 696 estudantes, até 1963-64, quando a cada professor caberiam 938 alunos. [4]

O corolário político da leitura desta situação no contexto revolucionário foi a procura de uma nova forma de articulação entre o Estado e os clubes populares como estratégia de resolução para o eternamente debatido e nunca resolvido problema do incremento da prática desportiva, projectada neste período não como meio de “regeneração da raça” mas sobretudo enquanto prática recreativa. Perante a inexistência de verbas, equipamentos e de técnicos, a solução para o problema passou pela corrida que, para além dos reduzidos custos, “pelo seu carácter intuitivo e pela rápida capacidade de mobilização, é encarada como a actividade primordial em prol da massificação desportiva” [5]. Na Primavera de 1975, um programa como “Atletismo à porta de casa”, desenhado a partir de cima, por um conjunto de técnicos da Direcção Geral dos Desportos (DGD), conseguiu, com recursos limitados e em associação com colectividades populares, multiplicar núcleos de praticantes.

O fim do período revolucionário colocou em causa algumas destas políticas. Os responsáveis por este esboço de popularização do desporto foram substituídos nos cargos que ocupavam na DGD. Contudo, o movimento da “corrida aberta a todos” não consentiu, a partir de baixo, que esse gesto verdadeiramente democratizador do acesso à prática desportiva se desvanecesse. Mário Machado, membro do sector da Corrida para Todos da DGD, fundou em 1978 a revista Spiridon. Nas páginas dessa revista, cujo título se inspira no nome aguadeiro grego que venceu a primeira maratona dos Jogos Olímpicos da era moderna, realizados em Atenas em 1896, é possível acompanhar a impressionante expansão das provas de estrada em Portugal. Provas que tinham como propriedade fundamental a capacidade de incluir categorias sociais -crianças e jovens, mas também mulheres e veteranos – habitualmente secundarizadas nas provas federadas e nos grandes clubes, vocacionados sobretudo para a competição. Um pouco por todo o país surgiram eventos com as mais inusitadas características, em termos de distância e trajecto. Os modelos estabelecidos, racionalizados e standartizados do atletismo de competição [6] foram colocados em causa pelos “piratas da corrida” ou os “coxos”, como eram designados os atletas populares pelos dirigentes federativos, que sistematicamente se opuseram a estas iniciativas. As provas, organizadas por pequenas colectividades locais, tanto podiam decorrer na praia ou na montanha, em circuitos urbanos ou em corta-mato. Eram distribuídos prémios de participação e medalhas por todos. Por vezes, oferecia-se uma fatia de bolo a todos os participantes.

Da clássica meia maratona da Nazaré, cuja primeira edição remonta a 1975, ao grande prémio especial de Alcobaça (8km), organizado pelo NASA (Núcleo dos Amigos de Spiridon de Alcobaça) passando pela corrida “Manteigas-Penhas Douradas”, ou pelas três léguas do Nabão, prova criada pelo CALMA (Clube de Actividades de Lazer e Manutenção, sediado em Tomar) a prática da corrida cresceu de forma significativa nas periferias dos grandes centros urbanos, algumas regiões do interior e em zonas escassamente dotadas de infra-estruturas desportivas.

Curiosamente, e contra boa parte dos discursos que ocupavam o então hiperpolitizado espaço público português, foi também neste período que se iniciou o financiamento do atletismo de alta competição, que até então apresentava um carácter pontual e errático. O apoio de 500 contos concedido, em 1975, pela mesma DGD, à preparação dos 4 atletas que participaram nos Jogos Olímpicos de Montreal, realizados em 1976, acabou por dar frutos, contra as opiniões e expectativas de alguns comentadores que consideravam, à época, toda a prática desportiva competitiva como um obstáculo à revolução e à massificação da actividade desportiva. [7] O resultado dessa participação olímpica foi a primeira medalha da história do atletismo português, com o segundo lugar obtido por Carlos Lopes na prova dos 10 mil metros. Os atletas portugueses de alta competição continuaram nos anos seguintes a destacar-se no atletismo mundial. Este percurso de vitórias incluiu um número significativo de atletas femininas que assim conquistaram, de forma inédita, as páginas de imprensa e os ecrãs de televisão. Na realidade, entre o atletismo popular e o atletismo de competição criou-se uma intensa interdependência. A expansão das provas abertas a todos possibilitou o alargamento da base social de recrutamento dos atletas de competição. Os campeões, por sua vez, ajudavam a motivar a participação popular nestas provas. A oposição não era então, como não é hoje, entre desporto recreativo e desporto de competição. A linha de clivagem fundamental deve ser traçada entre o desporto de elite, exclusivista, e o desporto de integração, democrático.

A herança destes “piratas” – ancorada na colaboração democrática e igualitária entre um conjunto de técnicos progressistas, o poder local e uma imensidão de pequenos clubes populares – ainda perdura. Quando falsas dicotomias e antigos fantasmas, regressados de um passado que julgávamos definitivamente encerrado, parecem ganhar novo fôlego, resgatar os mapas onde um outro futuro foi desenhado oferece-nos uma possibilidade de fuga do labirinto em que nos encontramos. Não se trata defender o obsceno miserabilismo do “fazer mais com menos” ou mesmo um lirismo nostálgico de um passado que jamais se repetirá. Não se trata igualmente de responder às interpelações do novo “Desporto para Todos”, subordinado à criação de mercados ou dependente do patrocínio empresarial, ou ainda do moderno higienismo, e o seu puritanismo repressivo. Trata-se, isso sim, de identificar as condições sociais de possibilidade de produção de outros caminhos para o desporto em Portugal.

Notas

[1] Carvalho, Melo de (1976), Desporto e Revolução, uma política desportiva, Lisboa, Direcção Geral dos Desportos, p. 31.

[2] Carvalho, Melo de (1998), Desporto Popular, Porto, Campo das Letras, p. 13.

[3] Plano de Fomento Gimno-desportivo para 1966-1970 (1965), Lisboa, Ministério da Educação Nacional, DGEFDSE, 1965, pp. 42-43.

[4] Plano de Fomento Gimno-desportivo para 1966-1970 (1965), Lisboa, Ministério da Educação Nacional, DGEFDSE,, pp., pp 46-47.

[5] Cardoso, Carlos Paula (2000), História do Atletismo em Portugal, Lisboa, Clube do Coleccionador dos Correios, p. 56.

[6] Bale, John (2004), Running Cultures, London and New York, Routledge, 2004.

[7] O Século, 21/10/1975, p.11.

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