Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: A evolução dos consumos domésticos em Portugal (1967-2012)
Autor/a: Mónica Truninger e José Gomes Ferreira
Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
E-mail: monica.truninger@ics.ul.pt; jose.ferreira@outlook.com
Palavras-chave: consumo, evolução, alimentação, transportes, habitação.
A mudança para o regime político democrático nos anos 70 e a entrada na Comunidade Europeia nos anos 80, possibilitou aos portugueses sonharem mais alto, e tentarem reproduzir os padrões de consumo das sociedades europeias mais avançadas. A abertura ao exterior e os fluxos migratórios dinamizaram estas expectativas de consumo, criando aspirações em torno do consumidor moderno, cosmopolita e hedonista (por contraste às privações, pobreza e escassez do “país rural” do passado). Melhores condições de vida, aliadas à construção do Estado Social (mesmo que fraco), alargaram o acesso dos portugueses a bens e serviços cuja oferta também se generalizou (e.g. centros comerciais).
Os mecanismos de crédito ao consumo ganham fôlego sobretudo a partir da década de 90. Se inicialmente foram importantes para possibilitar o aumento dos níveis de conforto das famílias (ter casa, carro, tecnologias e férias no estrangeiro), mais tarde tiveram efeitos perversos no seu crescente endividamento. Tal como concluído por Cruz (1) e Ribeiro (2), as classes sociais continuam a fazer sentido para explicar os perfis de consumidores. Os grupos socioeconómicos mais elevados sempre tiveram acesso privilegiado a bens e serviços. Contudo, assistimos nas décadas mais recentes a alguma diluição das diferenças de classe através da democratização do acesso ao consumo. Outros marcadores entram em ação tais como o género, a idade, as redes de sociabilidade e os fluxos migratórios.
Analisando estas transformações por domínios de consumo, através dos Inquéritos às Despesas das Famílias recolhidos pelo INE desde 1967, verifica-se que as despesas com a alimentação têm vindo a cair ao longo do tempo (de quase metade do orçamento das famílias em 1967/68 para cerca de 13% em 2010/11). Note-se também que, ao longo deste período, o retalho alimentar tem sofrido grandes mudanças. Se nos anos 60 a mercearia de bairro era o sítio privilegiado para as compras, a partir dos anos 80 os supermercados, e depois os hipermercados, entram nas rotinas de compras dos portugueses.
É de notar que o peso das despesas de alimentação é inversamente proporcional aos rendimentos das famílias. Quanto mais desafogadas economicamente estas se encontram, menos gastam nesta rubrica. Isto deve-se à variedade da oferta, aos preços mais competitivos no mercado, e à diversificação das despesas distribuídas por outras rubricas. Porém, há alguns contrastes a assinalar. As famílias com maiores rendimentos e mais qualificadas têm um acesso mais privilegiado a alimentos como a carne, o leite e seus derivados, e a fruta. Pelo contrário, o peso da alimentação é maior nos orçamentos das famílias menos qualificadas, menos instruídas e com menores rendimentos. Como já assinalara Cruz [1] e Ribeiro [2], verifica-se que estas desigualdades têm vindo a ser atenuadas, pelo menos até 2005/2006, indicando que a alimentação já não é um marcador de distinção social tão acentuado.
As despesas com a habitação seguem uma tendência contrária às da alimentação, já que sofrem um aumento de 14% na década de 60 para 27% na década de 2000. Os custos com a casa tornam-se na categoria com maior peso nos orçamentos familiares a partir de 2000 (ver [1]), superando todas as outras rubricas, sendo esta uma mudança estrutural nos consumos dos portugueses nos últimos 50 anos. Isto deve-se ao peso das rendas, dos empréstimos para a casa (facilitados com o crédito à habitação), e à utilização frequente de equipamentos e tecnologias de alto consumo energético para satisfazer os novos padrões de conforto (ar condicionado, aquecimento central, tecnologias e gadgets eletrónicos).
No que concerne às despesas com transportes e comunicações, estas aumentaram de 5% na década de 60 para 16% na década de 2000. Na década de 90, o carro tornou-se numa extensão móvel do corpo dos portugueses, símbolo de autonomia, distinção social e bem-estar – o seu uso foi incentivado, entre outros fatores, pela construção de vias de comunicação, estratégias aguerridas de marketing e publicidade, construção de novos bairros periféricos e abandono dos centros habitacionais. Já nos anos 2000, e até mesmo durante a atual crise, as telecomunicações (internet, telemóvel, pacotes TV cabo) são um importante símbolo de distinção social (nomeadamente entre os jovens), e fazem parte das estratégias de integração social dos seus utilizadores, sobretudo os idosos e as famílias com baixos rendimentos e menos qualificadas. Ou seja, à semelhança do carro nos anos 90, o telemóvel e a internet tornam-se numa extensão do corpo dos portugueses nos anos 2000.
Em relação às despesas com os Lazeres e Cultura (onde se inclui a instrução, hotelaria e restauração) estas subiram ao longo dos anos (de 5% na década de 60 para 18% na década de 2000). Se nas décadas de 60 e 70 eram realizadas sobretudo pelos grupos socioeconómicos mais favorecidos, a partir dos anos 80, com a consolidação da sociedade de consumo, os lazeres e a cultura massificam-se, expressando uma diversidade de estilos de vida. Na situação atual de crise, esta é uma das primeiras rubricas a ser cortada pelas famílias na gestão orçamental quando se compara com a alimentação, a habitação e os transportes/comunicações. Uma possível tendência provocada pela crise é a redução da centralidade dos espaços públicos, remetendo a família à esfera doméstica, sobretudo em relação à alimentação (faz-se o McDonalds caseiro [3]).
Os portugueses parecem estar a reagir à crise através de contínuos ajustamentos criativos no seu quotidiano, adotando nas práticas de consumo o conhecido “desenrascanço”, mas sem mudarem fundamentalmente a sua relação ontológica com o consumo. Antes, reconfiguram as suas práticas de forma criativa. Isto acontece porque consumir é comunicar, é expressar a nossa identidade, é bem-estar, é prazer e é, também, cidadania. Esta relação fundamental com o consumo parece não se alterar, mesmo na atual conjuntura de crise.
Notas
[1] Cruz, Isabel (2009), Entre estruturas e agentes: padrões e práticas de consumo em Portugal Continental, Tese de Doutoramento, Porto: Universidade do Porto.
[2] Ribeiro, Raquel, Consumo e Classes Sociais em Portugal: auto-retratos, Lisboa: Causa da Regras.
[3] Truninger, Monica e José G. Ferreira (2012), Quem casa quer casa: evolução dos consumos domésticos (1967-2012), Conferencia ICS 2012, 27 de Novembro, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.
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