O “estranho” mundo dos magistrados: o papel dos juízes em tempo de crise de direitos de cidadania – Parte II

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: O “estranho” mundo dos magistrados: o papel dos juízes em tempo de crise de direitos de cidadania – Parte II

Autor: João Paulo Dias

Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra

E-mail: jpdias@ces.uc.pt

Palavras-chave: juízes, crise, direitos dos cidadãos

Os juízes são o garante da independência do poder judicial, com um dos três pilares tradicionais do Estado, na velha concepção montesquiana. Não pretendo aqui discorrer sobre se esta visão do Estado ainda é atual e se tem, hoje em dia, substância. Provavelmente, é necessário refletir bastante… Interessa agora questionar, em tempos de crise como a que vivemos e sentimos diariamente, para não mencionar a pressão mediática para uma narrativa da “crise”, o papel e a responsabilidade que a justiça e, em particular, os juízes detêm neste contexto.

A ideia defendida, pelos vários titulares de órgãos de soberania, ao longo das últimas décadas em Portugal, de que a estabilidade do poder judicial, baseada mais em princípios do que em pessoas, é essencial para consolidar uma credibilidade pública, fundamental para funcionar como poder fiscalizador dos restantes poderes estatais e, assim, reforçar a sua própria credibilidade no seio dos sistemas democráticos.

Não deixa de ser sintomático dos tempos turbulentos em que vivemos, o facto de passarem, cada vez mais, pelos tribunais as expectativas dos cidadãos em readquirir uma certa estabilidade social, laboral e económica ou, pelo menos, não a perder. Isto é, os tribunais, que sempre foram das instituições que mais se opuseram à transformação social, são hoje vistas com uma das últimas instituições capazes de adoptar uma postura progressista, no sentido de contrariar o apetite voraz da economia capitalista e de garantir os direitos de cidadania conquistados nos últimos séculos, mesmo contra a oposição dos tribunais de então [1]. Deste modo, e contraditoriamente, a simples defesa dos direitos de cidadania acaba por incorporar elementos “conservadores”, de simples manutenção do status quo arduamente conquistado nos últimos 200 anos. A luta pela defesa e reconstrução dos direitos de cidadania, numa perspetiva abrangente, necessita de ser efetuada segundo novos princípios e, essencialmente, com uma renovada postura perante os novos poderes que se instalam gradualmente na organização das sociedades modernas, sem a qual atingiremos um ponto de desestruturação completa, com graves consequências no “modelo social” que permitiu manter um equilíbrio entre os diferentes atores.

A independência da justiça é, neste contexto, um princípio cada vez mais importante para garantir a efetivação dos direitos dos cidadãos. E esta garantia depende, em muito, da sua capacidade para desempenhar as funções que legalmente lhe cometem. E a capacidade, por sua vez, depende bastante dos meios disponibilizados pelo poder executivo e das leis que devem aplicar, aprovadas pelo poder legislativo. Assim, a independência da justiça não depende apenas do poder judicial, in se, mas, também, e em larga medida, dos outros poderes estatais. Pelo menos, no que se pode antever das recentes evoluções verificadas na (re)organização dos poderes estatais modernos, esta é uma limitação que se manterá intocável.

A emergência de um maior protagonismo do judiciário deve-se, entre outros, a um duplo falhanço dos regimes democráticos na sua forma de Estado-Providência: por um lado, a existência de uma maior percepção, por parte da opinião pública, da falta de transparência do funcionamento dos sistemas democráticos atuais; por outro, a perda de eficiência, de proteção social e da garantia dos direitos proporcionados pelo próprio Estado [2]. Assistimos, neste processo, a uma transferência da legitimidade do Estado, por via dos poderes legislativo e executivo, para o poder judicial, o que só por si constitui um fator de polémica e atrito, não apenas na sociedade em geral, mas também entre os corpos profissionais dos vários poderes em disputa. Isto sobretudo quando os tribunais parecem querer assumir um papel progressista, de defesa dos direitos dos cidadãos, e de fiscalização da atuação dos atores estatais, apesar de terem sido das instituições mais conservadoras ao longo dos séculos, resistindo às mudanças e perpetuando rituais anacrónicos e elitistas.

A resistência ou atitude progressista dos juízes, que se observa atualmente, ao liderarem a interposição de processos nos tribunais contra o Governo, pela aplicação das medidas de austeridade impostas pela troika, é igualmente compreensível por serem “apanhados” no corte generalizado aos serviços públicos. Isto é, os juízes arriscam-se a ser tomados, quer como defensores dos direitos dos cidadãos, quer como detentores de atitudes corporativas, consoante os olhos que observam a sua atuação e as posições político-profissionais em que se encontram. Até porque quem vai julgar estes processos em tribunal são os próprios juízes, resultando num risco de serem acusados de “julgar em causa própria”.

Os desafios que se colocarão, no futuro, aos juízes é de saberem até que ponto estão genuinamente a avaliar a delapidação dos direitos de cidadania assumindo, legalmente, uma posição de defesa da sua manutenção, ainda que reinventando necessariamente a fundamentação que os legitima ou se, pelo contrário, vão enveredar pelo assumir de uma posição de confronto pela defesa dos seus próprios direitos (estatuto, competências, salários, férias, etc.), sabiamente negociados nos últimos quase 40 anos de democracia, resvalando para uma postura corporativa, cuja ação termina no momento em que atingirem os seus objetivos.

Não é indiferente a postura que assumirem, apesar da luta pelos seus interesses ser, igualmente, por arrastamento, em parte, a luta dos restantes cidadãos. Num período de conflito extremo, com um crescendo de tensão social a emergir, os juízes serão julgados pelos seus atos e atitudes. A sentença final do julgamento por parte dos cidadãos será crucial para a sua legitimidade e credibilidade numa justiça que, cada vez mais, sente a erosão global provocado pela desilusão num futuro incerto e receado. Aos juízes cabe a responsabilidade de tomar a decisão certa.

Notas

[1] Santos, Boaventura de Sousa (2011), Portugal: Ensaio contra a autoflagelação. Coimbra: Almedina.

[2] Santos, Boaventura de Sousa (1999), «The GATT of law and democracy». Oñati Papers. Nº 7. Oñati: IISL, 49-86.

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Uma Resposta a O “estranho” mundo dos magistrados: o papel dos juízes em tempo de crise de direitos de cidadania – Parte II

  1. António Pedro Dores diz:

    Trata-se de um assunto da maior relevância e complexidade. Não deve ser tratado como um problema de gestão institucional. Trata-se prioritariamente de um problema de moral social.
    Os tribunais são conservadores ou são progressistas? O poder judicial deve ser “estável”, segundo “vários titulares de órgãos de soberania”? O que quer isso dizer? Pelos tribunais passam “as expectativas dos cidadãos em readquirir uma certa estabilidade social, laboral e económica”?
    A informação disponível mostra que os juízes em Portugal (ao contrário do que ocorre noutras partes do mundo) têm um baixíssimo prestígio social (de facto as pessoas são amedrontadas e desprezadas pelos magistrados com grande frequência, como se queixa o Bastonário da Ordem dos Advogados). O facto dos políticos ainda serem mais temidos e mal vistos pela população não faz do poder judicial nenhuma esperança para nenhum português.
    A formação e a promoção de juízes – bem como a organização disciplinar – como também no caso dos advogados, requer uma profunda revisão epistemológica e política, em função da história, dos resultados práticos, da situação em que nos encontramos e do futuro que queremos. Não haverá serviço judicial à democracia sem o respeito pelas tradições anti-inquisitoriais do direito, que são precisamente aquelas que estão dominadas neste momento.

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