A pureza perdida do desporto

Dimensão analítica: Mercado e condições de trabalho

Título do artigo: A pureza perdida do desporto

Autor: Rahul Kumar

Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais -UL

E-mail: rahul.m.kumar@gmail.com

Palavras-chave: Futebol, Estado Novo, Trabalho

A 30 de Maio de 1960, através da Lei n.º 2104, pela primeira vez, a legislação portuguesa “admitia a prática desportiva a profissionais e não amadores nas modalidades de futebol, ciclismo e pugilismo”. Na proposta apresentada à Assembleia Nacional considerava-se que embora noutras modalidades os seus praticantes se “tenham mantido felizmente com as características muito dignificantes de puros amadores, a verdade é que, naquelas modalidades que maiores paixões despertam, mais público chamam e mais dinheiro movimentam, os praticantes respectivos, afinal os dadores do espectáculo, não puderam deixar de se profissionalizar.” Mesmo reafirmando o “fim eminentemente educativo” do desporto, considerado como prática de lazer que “nada tem que ver com o lucro material”, uma vez “perdida a pureza do desporto e portanto a sua essência”, o legislador considerava inevitável regulamentar essa nova situação.

A iniciativa resultava, portanto, menos de uma mudança das concepções ideológicas no interior do regime sobre as funções sociais do desporto ou sobre o significado do trabalho do que de uma efectiva incapacidade de regulação do quotidiano desportivo português ou de delimitação das influências externas. Já em 1943, pelo Decreto-Lei n.º 32.946 de 3 de Agosto, se reconhecia na educação física “o problema que em primeiro lugar interessa ao Estado” considerando que aquela devia realizar-se “antes de tudo, através de métodos de ginástica adequados”. Mais do que a afirmação de um projecto, o dispositivo legal que regulamenta o funcionamento da Direcção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, pode ser interpretado como uma admissão das dificuldades sentidas nos projectos de enquadramento dos lazeres e tempos livres de organizações do Estado Novo perante a concorrência dos clubes desportivos. A incapacidade financeira do Estado para criar uma extensa rede de cursos de educação física e o reconhecimento da fraca “sedução” que aqueles cursos exerciam sobre a população portuguesa, mais interessada nos desportos, e em especial no futebol, pareciam ser obstáculos incontornáveis à construção da política desportiva almejada.

À Direcção-Geral coube, por conseguinte, a missão injuntiva de “dirigir” e “orientar” “no sentido de sobreporem aos interesses clubistas o interesse geral, de substituírem a política da vitória do clube seja como for por uma política desportiva de sabor verdadeiramente nacional”. Coube-lhe também a tarefa de regular a actividade dos “elementos da organização desportiva existentes” que, tendo-se desenvolvido à margem das instituições e das intenções estatais, escaparam até então ao seu controlo. No quadro de um regime que enfrentava a maior parte das formas de conflito social como potenciais ameaças para a ordem social, a tentativa de conter a competição desportiva e a identificação clubista reproduz as mesmas lógicas que sustentaram a rejeição do conflito na esfera das relações sociais de produção, expressa no Estatuto Nacional do Trabalho, de 1933, através da proibição da organização sindical autónoma dos trabalhadores. Esta resistência ao espectáculo desportivo não pode deixar de colocar em causa uma certa ideia – que alcançou a firmeza do senso comum através da fórmula dos três “efes” – sobre o papel do futebol como ferramenta dessa “capacidade constante de distrair o povo” que, nas palavras de Eduardo Lourenço, definiu o Estado Novo.

Entre os diferentes meios mobilizados para limitar o desenvolvimento do espectáculo desportivo, assumiu particular importância a restrição das transferências dos desportistas. Isto é, a implementação de barreiras à mobilidade de atletas no quadro de um mercado de trabalho que, independentemente das restrições legais – a legislação portuguesa de 1943 apenas permite a mobilidade dos atletas por motivo justificado, quase sempre extra-desportivo -, já se encontrava em avançado processo de formação. Desde os anos vinte que a hegemonia social e ideológica das classes ociosas no campo desportivo era quotidianamente questionada na imprensa especializada. O interesse do público num espectáculo desportivo cada vez mais competitivo minava, sem condescendência, a ética exclusivista da prática desportiva, ancorada no amadorismo, que pensava o futebol como lazer, privilégio de determinados grupos sociais. De um lado, ficava o ideário amador, cada vez mais limitado à esfera de influência do Comité Olímpico Português. Do outro, um campo desportivo, dominado pelo futebol, ciclismo e boxe, em processo de popularização e comercialização. Pressionadas pelos sócios e adeptos, e pelo seu próprio desejo de vencer, as direcções dos clubes procuravam oferecer aos melhores atletas incentivos económicos e condições de trabalho para que pudessem desenvolver as suas competências físicas, técnicas e tácticas.

Convertidos em mecenas, os dirigentes e adeptos dos clubes competiam para dar ao novo jogador um emprego estável e bem remunerado, com funções e horários compatíveis e quase sempre subordinados ao programa de preparação desportiva das suas equipas. Viviam-se os tempos do chamado “profissionalismo encapotado”. Na prática os melhores intérpretes do jogo, recebiam “luvas”, prémios de jogo, prémios de assinatura e outros benefícios económicos. Para efeitos legais eram simples empregados de escritório, mecânicos ou operários que nos seus tempos livres, como estabeleciam as regras do amadorismo, representavam o clube da sua preferência, com “amor à camisola”. Noutros países europeus, como a Inglaterra (1895), Espanha (1926) e França (1932), ou sul americanos, como a Argentina (1924) ou o Brasil (1933), há muito que o profissionalismo tinha sido integrado nos regulamentos desportivos e aceite como consequência lógica da popularização do desporto.

A legislação portuguesa de 1943 não deixa, neste contexto, de parecer desfasada do seu tempo. Por um lado recusava reconhecer uma prática já instituída no campo desportivo, e por outro revelou-se profundamente ineficaz na regulação dos contratos entre atletas e clubes nas duas décadas seguintes, prejudicando, nesse gesto, o atleta, já um trabalhador mas que ainda não era considerado como tal. A ordem de comando do regime, sobre a remuneração e estatuto dos jogadores de futebol, não ressoou, contudo, junto das direcções e massas associativas dos principais clubes portugueses, mesmo nos casos em que essa afinidade política era patente. A importância do que se jogava no relvado não permitia grandes interferências políticas. O aumento da concorrência, apesar dos limites legislativos, contribuiu, apesar de tudo, para subtrair os atletas aos desígnios das suas entidades patronais.

Então, como agora, a fuga ao trabalho, quase sempre desqualificado e mal remunerado, e a mobilidade social que a prática do futebol proporcionou a muitos jovens das classes trabalhadoras, não deixou de ser objecto de censura social. As críticas que se ouvem, a começar nos corredores das universidades, aos salários auferidos por Cristiano Ronaldo, ou o inusitado lamento do presidente da Confederação Industrial Portuguesa, António Saraiva, publicado na edição de 14 de Janeiro do Record, sobre o desaparecimento do “amor à camisola”, apelando à desmercadorização do futebol, não só reflectem uma nostalgia de um passado que nunca existiu como ignoram a natureza quase feudal do vínculo que amarrava o jogador ao clube.

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