O consumidor hedonista

Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: O consumidor hedonista

Autora: Isabel Silva Cruz

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – ISFLUP

E-mail: imsilvacruz@gmail.com

Palavras-chave: Consumidor, valores, hedonismo

 

A questão do sentido, do valor, da comunicação, dos papéis e do status, da posição na hierarquia social são centrais para a compreensão das práticas de consumo. Através destes elementos não só são integradas na análise as dimensões tempo e espaço (critérios situacionais), os valores que os indivíduos projectam nos objectos (práticos, consumistas, hedonistas), como também a dimensão afectiva, a criatividade e as representações imaginárias associadas aos bens de consumo. Deste modo, na análise das práticas de consumo a dimensão cultural assume relevância por relação aos determinantes de pendor mais económico. Assim, torna-se pertinente atender às subculturas e às especificidades do sistema cultural em cada sociedade e investigar o consumo enquanto forma de reprodução e de comunicação social característica da sociedade de consumo.

O consumo hedonista caracteriza-se pela sobreposição dos desejos emocionais às motivações utilitárias e pela projecção de um significado subjectivo nos objectos que ultrapassa os seus atributos reais. A procura de novas experiências é uma outra característica da ética hedonista. Os consumidores mais abertos a valores hedonistas e à mudança são mais impulsivos. Nesta perspectiva a origem do prazer deixa de residir nos sentidos e funda-se na emoção. Os estímulos decorrem da imaginação e esta favorece a ampliação das experiências agradáveis. Consequentemente, as expectativas emocionais e hedonistas tornam-se determinantes na escolha dos bens e serviços consumidos. A insaciabilidade e a procura incessante de novos bens (materiais e não materiais) estão associadas ao hiato entre realidade e a imaginação e negam o carácter materialista do consumo moderno. Assim, o princípio do prazer sobrepõe-se ao princípio da realidade, na sociedade de consumo. Nesta sociedade, o tempo da necessidade dá lugar ao tempo de oportunidades. Um tempo aleatório, aberto à emergência do novo, transitório, constituído por instantes, por episódios com prazo fixado e por inícios ininterruptos.

Campbel [1] coloca o romantismo e a mudança na concepção das fontes de prazer, na estrutura do hedonismo, da subjectividade moderna, na origem da actual sociedade de consumo e do consumo moderno. Nesta sociedade, os desejos sucedem-se num processo constante e permanente que traduz uma insaciabilidade face a novos produtos, e que tem origem na passagem do hedonismo tradicional para o moderno. É esta passagem que aproxima o romantismo e o consumismo. No hedonismo tradicional o prazer procede dos sentidos e resulta da satisfação de estímulos exteriores. É em função do prazer gerado que as experiências são valoradas. Assim, a memória desempenha um papel importante na antecipação do prazer que decorre da imaginação. O hedonismo moderno funda-se na emoção e o prazer é procurado através da estimulação emocional e não apenas através da estimulação sensorial. Os estímulos decorrem da imaginação e esta favorece a ampliação das experiências agradáveis. As imagens são produzidas e modificadas pelos indivíduos para seu próprio consumo. A imaginação não tem limites e é controlada pelo próprio indivíduo. Contrariamente à fantasia, o sonho auto-ilusivo, o daydream, que constitui um mecanismo de controlo da imaginação, tem uma relação de possibilidade e de probabilidade com a realidade. Este facto, aliado ao poder de autocontrolo, torna-o imensamente sedutor e convincente. Assim, no contexto do hedonismo moderno, a actividade central do consumo é a procura do prazer imaginativo associado a um produto, o prazer das experiências auto-ilusivas construídas a partir de significados associados. Este pressuposto, que condiciona a manipulação activa e simbólica dos bens e serviços adquiridos ao desejo individual, reduz o marketing e a publicidade a meros sistemas informativos onde se geram novas possibilidades de daydreams. Nesta perspectiva, as expectativas emocionais e hedonistas tornam-se determinantes na escolha dos bens e serviços consumidos. É, também, deste modo que o autor explica quer a ênfase na novidade quer na insaciabilidade e que nega o carácter materialista do consumo moderno, reforçado pela eliminação constante das mercadorias e pela procura permanente da novidade. Esta procura constante de novos bens, os objectos de desejo, decorre da desilusão provocada pelo hiato entre realidade e imaginação.

Em Portugal a incorporação de valores hedonistas surge associada aos percursos escolar e laboral. Estes valores são, também, potenciados pelos contextos urbanos e pelo aumento do capital económico. Importa, também, salientar que a repercussão dos valores hedonistas sobre as práticas de consumo é particularmente relevante nas rubricas de despesa relativas à cultura e lazer e a hotéis, restaurantes, cafés e similares. Estes últimos consumos encontram-se associados à esfera do lazer e das sociabilidades, extravasando a mera necessidade básica que lhe subjaz, a alimentação. Ao associarem o prazer da diversão à satisfação de uma necessidade básica revelam a presença de atitudes e valores hedonistas [2].

Finalmente, queremos afirmar que não existem consumidores hedonistas puros. A associação que é possível estabelecer entre as práticas de consumo e os diversos contextos de socialização e de interacção evidencia a influência que os contextos e as trajectórias de vida exercem na incorporação de disposições contraditórias. Tal como Lahire, defendemos que o actor é plural [3].

 

Notas

[1] Campbell, Colin (2000), A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, Rio de Janeiro: Rocco.

[2] Cruz, Isabel (2009), “Entre estruturas e agentes: Padrões e práticas de consumo em Portugal Continental”, dissertação apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia [texto policopiado].

[3] Lahire, Bernard (1998), Homem Plural. Os determinantes da acção, Brasil: Editora Vozes.

Esta entrada foi publicada em Saúde e Condições e Estilos de vida com as tags , , . ligação permanente.