Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: Notas em torno da política de Mínimo Garantido em Portugal
Autor: Eduardo Vítor Rodrigues
Filiação institucional: Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Departamento de Sociologia / Instituto de Sociologia)
E-mail: eduardor@letras.up.pt
Palavras-chave: Política social, Desigualdades, Rendimento Social de Inserção
O contexto socioeconómico da última década, caracterizado entre outras coisas, pela fragilização dos vínculos laborais, fez emergir “novos riscos” (Ulrich Beck), um contrato social reconfigurado (Pierre Rosanvallon) e a emergência de novas “inseguranças sociais” (Robert Castel) e novas formas de “desqualificação social” (Serge Paugam). Face a essa nova “era da incerteza” (J. K. Galbraith) inauguram-se novas relações com o mercado de trabalho, ora mais precárias, ora mais sazonais, ora mais mal-pagas e empobrecidas. Desta forma, é o desemprego, a redução salarial (directa ou indirecta) ou a precarização laboral que caracteriza mais fortemente a reestruturação do mercado de trabalho actual. Além disso, percebe-se uma relação mais intensa e marcada com a assistência e com os apoios sociais, por sua vez cada vez mais escassos, com todas as consequências daí resultantes, mesmo as mais perversas, como o estigma, a desvalorização identitária, a incapacidade de resposta aos novos riscos sociais, mas também e cada vez mais aos velhos riscos sociais.
No entanto, ao mesmo tempo que assistimos a uma forte internacionalização da actividade económica, a que chamamos tantas vezes globalização ou mundialização da economia, presenciamos um isolamento nacional das respostas de política social.
A União Europeia é muito diligente e persuasiva nas dimensões económicas, onde intervém com Directivas, mas parece menos empenhada nos domínios sociais, para os quais desenha (apenas) Recomendações. Ora, definem-se Directivas para o que lhes é relevante, a economia, e enunciam-se Recomendações para o que lhes parece acessório. E não é por falta de bons diagnósticos ou de documentos norteadores: a UE tem-nos presenteado com documentos verdadeiramente inspiradores. A Estratégia de Lisboa é um exemplo: tão inspiradores como voláteis na sua aplicação prática.
De facto, forma-se uma Europa a duas velocidades, não apenas pelo gap e pelas desigualdades internas que gera, mas também pela forma como olha dualisticamente as questões económico-financeiras, por um lado, e as questões sociais, por outro.
O problema parece ser de contra-ciclo: de facto, as políticas sociais estão estreitamente indexadas às políticas económicas ou à realidade económica. Isto faz com que elas sejam mais fortes quando a economia cresce, e mais fracas quando a economia entre em estagnação ou em recessão. Ora, exactamente, elas tornam-se mais fracas e amputadas quando mais são necessárias, pela razão exclusiva de se considerar, a meu ver erradamente, que elas são tributárias do crescimento económico. Isto resulta do equívoco neo-liberal, segundo o qual só se distribuiu o que é criado. Ora, do meu ponto de vista, o raciocínio é outro: como considero as políticas sociais um factor produtivo, elas são um factor de crescimento e não uma consequência do crescimento económico. Mais uma vez, isto não é um preciosismo conceptual, é uma questão central na configuração das políticas e da intervenção social.
Importa, pois, perceber se estamos num tempo de crise, sempre passageiro como quase todas as crises, ou se estamos perante um novo tempo, a que por erro chamamos tempo de crise, mas que é de facto um novo tempo, que inaugura novas dinâmicas e irreversíveis processos.
Esta transição económica e social inaugura novos domínios de vulnerabilidades: por exemplo, muitos, mergulhados nos créditos outrora facilitados, ficam, com o desemprego de (pelo menos) um elemento da família, aprisionados pelo pagamento das dívidas. O trabalho, outrora assumido como caminho para a inserção e para a descolagem da pobreza, já não o consegue garantir. Os “novos pobres” (“novos”, não apenas por serem recentes, mas, sobretudo porque obedecem a uma nova dinâmica socioeconómica, que é a detenção de um emprego e os baixos salários), edificam uma nova realidade que rompe com o passado: o emprego já não garante a fuga à pobreza, o salário convive com a rarefacção de rendimento disponível, com a pobreza e com o recurso à assistência, mesmo em grupos e classes sociais que pareciam incólumes a estas hipóteses. Ao mesmo tempo, importantes mudanças legislativas são operadas no sentido da flexibilização dos vínculos laborais, da precarização dos contratos de trabalho e da redução de importantes instrumentos de política social e de inclusão, sempre sob a inusitada justificação da “competitividade” e dos “constrangimentos financeiros”.
Sobressai a irreflectida argumentação dos cortes nas prestações sociais em função do alegado rigor do acesso às prestações; além de ser minimalista, generaliza a ideia de que os beneficiários são todos, de alguma forma, fraudulentos ou preguiçosos. Isto pode ajudar a fazer passar os cortes na opinião pública, sem grande contestação, mas é eticamente errado e criará uma zona cada vez mais alargada de vulnerabilidades.
Ora, devemos ser consequentes com os conceitos: não podemos falar de empowerment, de capacitação, de inserção duradoura e, ao mesmo tempo, apostar-se em soluções nada qualificantes e nada inclusivas. O problema não está na actividade em si, mas no quadro jurídico-normativo em que se desenvolve essa actividade. O exercício de uma actividade deve ser um instrumento de inclusão digna, não uma forma de retribuir gratidão, o que é, em si mesmo, um equívoco conceptual.
Neste momento, as principais “vítimas” são os pobres e os assistidos. Mas a breve prazo, as “vítimas” serão os técnicos envolvidos na gestão e aplicação da medida. Depois do discurso populista tentar acabar com a medida, sob o pretexto de fraude e da preguiça, vai fazer a investida sob o pretexto da incapacidade dos técnicos prosseguirem os objectivos da medida, ora porque não os compreendem, ora porque eles são alegadamente incompreensíveis. Aliás, a carga burocrática que cai em cima dos técnicos é já parte da tendência.
A própria noção de recalibragem e de re-experimentação implicam disponibilidades técnicas e materiais para resolver muitos dos handicaps que se situam a montante da inserção profissional e que a determinam.
Como consequência nos domínios da intervenção social, assumo a multidimensionalidade da análise: a perspectiva incide menos nos sujeitos do que nos mecanismos sociais e institucionais que produzem os factores de pobreza e para os quais contribuem a participação de factores e elementos objectivos (materiais) e subjectivos (representações simbólicas, auto-estimas e percepções subjectivas).
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma análise que visa “decompor” as dimensões do processo de vulnerabilização social e de exclusão, para além da sua vertente económica. Esta análise poderá constituir um instrumento de acção, na medida em que consiga, a partir da referida decomposição, fazer incidir nelas o enfoque da intervenção, com vista à inversão do processo. No entanto, isto implica um modelo de intervenção mais individualizado junto dos sujeitos, uma intervenção multidimensional e uma reformulação dos modelos de intervenção tradicionais.
Bibliografia
Rodrigues, Eduardo Vítor (2010), “Escassos Caminhos: os processos de imobilização sociais dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção”, Porto, Afrontamento, ISBN: 978-972-36-1056-7.
Rodrigues, Eduardo Vítor (2010), “O Estado e as Políticas Sociais em Portugal: discussão teórica e empírica em torno do Rendimento Social de Inserção”, in Sociologia, n.º 20, Porto, FLUP.