Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: Eu, crítico
Autor: Rui Miguel Abreu
Filiação institucional: Crítico e jornalista
E-mail: rui.miguel.abreu@gmail.com
Página pessoal: http://www.33-45.org/?p=2444
Palavras-chave: Música, crítica, pensamento.
O pensamento relativista argumenta que todos os pontos de vista são igualmente válidos e daí a uma democratização das opiniões vai um passo que pode ser tendencialmente perigoso. As opiniões não valem todas o mesmo. Mas a ideia contrária tem ganho algum terreno numa era de fácil acesso às autênticas «caixas de sabão» em que os blogues se transformaram: é fácil subir para cima de uma e discursar para a multidão que em frente a ela se aglomerar, por minúscula que essa multidão possa ser. Mas não se pode – ou não se deve – confundir a voz, mesmo a mais ressonante, com a validade da opinião.
Esta distinção é particularmente importante no campo da crítica musical: a multiplicação das plataformas virtuais tornou instantâneo o que antes resultava de um processo, tendencialmente longo e complexo. Os pontos de vista constroem-se, não se reclamam. O crítico de arte é por isso mesmo um agente em permanente evolução, o que só complica ainda mais a definição do seu papel.
Olhando para o meu próprio caso, o que posso afirmar com certeza absoluta (e não relativa…) é que sou hoje um melhor crítico do que há 22 anos, quando comecei a assinar os meus primeiros textos no vespertino A Capital. Nestas últimas duas décadas, a minha bagagem – musical, documental, teórica – cresceu incomensuravelmente e esse crescimento informa cada uma das palavras que integro nos meus textos. Esse reconhecimento de que o pensamento crítico é uma rede em permanente crescimento impede-me muito naturalmente de concluir que já sei tudo o que preciso de saber. Que é, muitas vezes, exactamente a atitude que sustenta o impulso da subida para cima da tal caixa de sabão.
Ora, perceber que sou hoje melhor crítico do que há 20 ou mesmo há 10 anos equivale a afirmar também o contrário: quando comecei a escrever, as minhas opiniões eram bem mais insustentadas, desinformadas e frágeis do que são hoje. Traduzindo, gostava então de coisas que hoje nada me dizem e não conseguia ouvir outras que hoje não abandonam a minha esfera imediata de audições recorrentes. O exercício da crítica melhora também com a acumulação de experiência: há 20 anos não era apenas a minha colecção de discos que era mais reduzida – a minha visão do mundo, o meu depósito de referências, a minha estante de livros, a minha rede, enfim, era infinitamente mais pequena. A base de sustentação das minhas opiniões era por isso mesmo bem mais frágil.
Perceber tudo isso é assumir também que muitas das opiniões que hoje emito poderão ser transitórias e que a contínua formação do meu pensamento crítico deverá sofrer mutações nos próximos anos. Isso não significa, necessariamente, que um mau disco de hoje se transforme num clássico incontornável amanhã. Nada disso: a má música dos anos 80 continua a soar mal no século XXI por mais graça que eventualmente possamos achar aos penteados ou às roupas. Essa contínua evolução do pensamento crítico – e do gosto – significará mais certamente que um bom disco que não compreendi hoje possa revelar-se mais nítido daqui a uns anos. De John Coltrane e Sun Ra a Bob Dylan, Beatles e, por exemplo, Robert Wyatt, são muitos os exemplos de reencontros que achei bem mais proveitosos do que os encontros originais.
E portanto, se o relativismo não pode ajudar a colocar num mesmo plano todas as opiniões, poderá, ainda assim, servir para ancorar o pensamento num momento, num contexto específico, numa etapa. Costumo por isso mesmo dizer que melhor me compreenderá quem mais me ler e ao longo de mais tempo: cada texto que escrevo será um ponto num mapa mais vasto que forma o meu pensamento. Os textos, mesmo as pequenas críticas de meia dúzia de linhas, não são estanques e não contêm verdades absolutas. Por vezes não contêm sequer qualquer tipo de verdade, apenas tangentes, esboços de uma formulação crítica. Porque os discos não são todos iguais, não são todos permeáveis da mesma forma às nossas abordagens. Há discos que julgo perceber totalmente logo aos primeiros minutos de audição e outros que exigem mais trabalho, abordagens repetidas, às vezes até desvios – como, por exemplo, ir ouvir outras obras que possam de alguma forma ajudar a descodificar o que se tenta compreender. E depois há outro tipo de subtilezas onde entram o prazer e o desconforto, a transparência e a opacidade, o imediatismo e a exigência. A música não se impõe toda de uma mesma forma, com um mesmo ritmo.
Um crítico deve ser por isso mesmo um pensador, alguém que, como o editor e divulgador Gilles Peterson gosta de dizer, liga os pontos e expõe as suas conclusões na esfera pública: num jornal ou num blogue, numa caixa de sabão, seja ela de que tamanho for. E pensar significa construir conclusões próprias, adivinhar ligações onde outros vêem apenas vazio, perceber encaixes, diferenças, sintonias e dissonâncias, antecipar tendências e descodificar movimentos, atitudes. Dar o mesmo número de estrelas a um disco que o crítico do lado, não significa que a qualidade do pensamento produzido sobre esse mesmo disco tenha o mesmo valor em ambos os casos. Criticar um disco é oferecer uma ideia sobre a música que ele contém. E as ideias valem tanto mais quanto forem únicas.





Ter, passado 20 anos, uma maior bagagem pode dar um melhor arsenal de instrumentos úteis para a “crítica” ou o exercício do pensamento sobre uma obra, mas também acumula um conjunto de vícios, compromissos, limitações decorrentes de não se poder “dizer mal” de ou não poder “criticar” algúem, com as represálias que podem advir… ou seja, quanto maior é a integração num determinado sistema, tem menor é a liberdade da expressão, enfim, do pensamento! E, por isso, criticar há 20 anos atrás era, certamente, mais fácil a esse nível, ainda que o processo criativo fosse mais demorado, duro, cruel, sofredor, do que é hoje.
E procurar um equilíbrio entre a virtude da inexperiência e a vício da experiência é um dos maiores desafios que se colocam a quem faz do exercício de pensar a sua “arte”.
Boa sorte na busca!
Abraço
João Paulo Dias Coimbra
Não sei se concordo. Não há maior liberdade do que aquela que a acumulação de conhecimento proporciona. Neste caso a ignorância ou a falta de referências é que pode ser uma prisão. Por outro lado, julgo perceber em parte das suas palavras um erro comum: aquele que parece fazer muita gente acreditar que «criticar» é dizer mal. A minha tendência natural, por exemplo, é para dispender energia e tempo com aquilo de que gosto e que me estimula o pensamento. A percentagem de discos que merecem reflexões negativas da minha parte é muito ínfima quando comparada com a totalidade de lançamentos que abordo nos meus escritos. É até possível inverter a sua ideia: por vezes o que é realmente difícil é dizer bem do disco de alguém que se conhece bem. Enfim, mas entendo perfeitamente onde quer chegar. Não me parece é que exista algum sistema ou algum tipo de amarras específicas. Escrever já é um acto de liberdade. E nisso o que eu faço não é agora diferente do que o que fazia há 20 anos.
Obrigado
Rui Miguel Abreu
PS: e não me custou ter discordado de si, embora tenha a sensação de que nos conhecemos bem em tempos, certo? (Posso estar errado…)