Trabalho em estágio de sítio

N.º da Publicação: 4ª Série de 2015 (dezembro 2015)

Dimensão analítica: Mercado e Condições de Trabalho

Título do artigo: Trabalho em estágio de sítio

Autor: Francisco Fernandes Ferreira

Filiação institucional: Redactor/Autor web

E-mail: correiofff@gmail.com; site: http://ganhemvergonha.pt/

Palavras-chave: emprego jovem, trabalho não remunerado, estágios.

O setor dos anúncios de emprego em Portugal não está devidamente legislado e funciona numa espécie de zona de ninguém entre a publicidade e o Direito do Trabalho. A procura e a oferta são feitas quase exclusivamente online, em sites especializados, no portal do IEFP, em motores de venda de usados (como o OLX), no Facebook, no Linkedin, em fóruns ou mesmo em páginas de empresas. E tudo se pode anunciar. É frequente serem os próprios recrutadores a assumir que vão violar as leis, sem que daí resulte consequência alguma. Tal acontece, por exemplo, quando publicam anúncios de estágios não legislados, quando procuram falsos recibos verdes ou quando oferecem cargos com um salário inferior ao mínimo nacional. Desde 2013 que a plataforma Ganhem Vergonha expõe exemplos deste mundo sem lei, denunciando abusos de empregadores e alertando para a necessidade de regular os anúncios.

O projecto possui cerca de 30 mil seguidores registados, entre blogue e redes sociais, a maioria no Facebook. Já apresentou mais de 200 casos, com origem em um de dois tipos de fontes: anúncios online (publicados por recrutadores) ou testemunhos (enviados por trabalhadores ou candidatos a um emprego). E, em ambas vias, a veracidade da informação foi sempre investigada antes da divulgação. Entre o material recolhido – em consultas aos principais portais nacionais e nas denúncias recebidas semanalmente (mais de 2000, em dois anos) – o universo dos estágios foi ganhando preponderância.

A legislação prevê três tipos de estágios que não requerem remuneração: os curriculares, integrados num plano de estudos de cursos de escolas profissionais, institutos e universidades; os de acesso a uma ordem profissional, como as de advogados, arquitectos, engenheiros ou psicólogos; e os de muito curta duração [1], que não podem exceder os três meses e exigem a celebração de um contrato (que deve conter, «de forma fundamentada, os motivos que justificam o seu curto período de duração»). No entanto, a Ganhem Vergonha divulgou dezenas de ofertas de outros estágios que, apesar de não se enquadrarem nestas excepções, eram assumidamente não remunerados. Muitos empregadores decidem substituir-se ao poder legislativo e auto-atribuem-se o direito de inventar novas modalidades, criando até designações próprias: “estágio extracurricular”, “estágio de adaptação e avaliação”, “estágio pós-universitário”, “estágio de integração”, entre outras. A duração é também definida por quem recruta e há registos variados, entre um e doze meses. E aos candidatos, normalmente recém-licenciados ou recém-mestres, é dito logo na oferta que não há salário. Quando confrontadas pela plataforma, as empresas que os promovem repetem-se nas justificações. «Aqui todos começámos por trabalhar de borla», «os jovens chegam sem saber fazer nada e exigem muito tempo» ou «não recebem ordenado, mas têm outro tipo de ganhos» são argumentos frequentes.

Na verdade, os próprios vínculos do programa Estágio-Emprego, mais conhecidos como “estágios profissionais” (remunerados e financiados pelo IEFP), também proporcionam abusos. A sua aprovação é morosa e, como geralmente as empresas têm pressa em recrutar, muitos jovens começam a trabalhar sem contrato (e sem salário) enquanto aguardam a conclusão da candidatura, o que pode demorar quatro ou mais meses. A espera é especialmente dramática para trabalhadores independentes, forçados a cessar actividade no processo (ou seja, o Estado impede-os de trabalhar legalmente durante meses). Só que nem sempre a culpa está na burocracia. A plataforma registou inúmeros casos de empregadores que exigem um período de trabalho não remunerado a candidatos do Estágio-Emprego, isto é, estágios de acesso a um estágio.

Mas voltemos à aprovação. Nem sempre os problemas terminam com a validação do processo. Há registos de empresas que usam as tranches pagas pelo IEFP, destinadas às bolsas dos estagiários, para fins diferentes, nomeadamente os salários de outros funcionários. O acesso ao financiamento é realmente uma grande motivação para muitos empregadores. Tal é comprovado nos incontáveis anúncios para estágio profissional em que é pedida experiência aos candidatos (a exigência pode chegar aos cinco anos). Ou nos pedidos de estagiários para postos que não exigem qualificações específicas, como limpezas, atendimento em lojas ou vindimas.

Como foi dito acima, os estágios curriculares não exigem remuneração. E não só as empresas privadas recorrem a esta modalidade de forma questionável. O Ministério dos Negócios Estrangeiros, por exemplo, promove anualmente estágios de meio ano em embaixadas portuguesas, sem qualquer remuneração ou ajuda financeira. Entre os destinos estão cidades com níveis de vida caríssimos, como Nova Iorque, Londres ou Luanda. Serão estes estágios acessíveis a todos os estudantes? Muitas universidades, incluindo públicas, alinham na divulgação deste tipo de ofertas, incentivando a precariedade (péssima auto-promoção). E o mesmo acontece com os estágios de acesso a uma ordem profissional. Depois da formação académica, que dota os estudantes de conhecimentos para exercer um ofício, é exigida uma aprendizagem em contexto de trabalho (gratuito), que pode durar mais de 18 meses. Quantos jovens abdicarão de entrar nas ordens por não se puderem sujeitar a estes tirocínios?

Através das denúncias recebidas na Ganhem Vergonha, das discussões geradas pelas publicações e das opiniões auscultadas, pode-se concluir que a maioria dos estagiários não estagia: trabalha. Mesmo que passem por um período de aprendizagem inicial, comum a qualquer trabalhador com um novo emprego, acabam a produzir e a ocupar postos de trabalho. A plataforma denunciou várias empresas em que mais de metade da força laboral é composta por estagiários. E outras em que há cargos permanentes assegurados por estágios em cadeia. Convém relembrar que, apesar de trabalharem, os estagiários não têm garantidas condições básicas como o direito a férias, a baixa médica, o subsídio de desemprego, a licença de paternidade, entre outras.

É, portanto, necessário apertar a fiscalização e combater o recurso a estágios não legislados. Mas talvez a comunidade deva debater uma questão prévia: para que serve um estágio? Depois, será útil desmontar a ideia reinante que defende que os jovens retiram uma série de vantagens num estágio não remunerado. Todos os benefícios se mantêm se o estagiário for pago. Todos. E, finalmente, importa convencer os estudantes de que o trabalho sem salário não é uma etapa obrigatória. Por muito que o mercado o venda.

 

Nota

[1] Diário da República, 1.ª série, N.º 106, 1 de Junho de 2011.

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