Para uma leitura de género na intervenção com jovens infratores/as: uma introdução ao tema

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Para uma leitura de género na intervenção com jovens infratores/as: uma introdução ao tema

Autora: Vera Mónica Duarte

Filiação institucional: Instituto Superior da Maia

E-mail: vduarte@docentes.ismai.pt

Palavras-chave: delinquência juvenil, delinquência feminina, programas específicos de género, intervenção.

Num artigo publicado anteriormente, intitulado Delinquência juvenil no feminino: ver ou não ver, eis a questão!, chamei a atenção para a construção social das (in)visibilidades da figura feminina na cena da delinquência juvenil e evidenciei como é que, atualmente, a participação das raparigas na delinquência tem ganho expressão e expressões [1]. É neste contexto que se enquadra o tema que trago para a reflexão: faz sentido uma intervenção específica e sensível ao género no âmbito do sistema de justiça juvenil?

O Relatório de 2012 da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos Centros Educativos [2] aponta que, no que se refere às raparigas, “deparamo-nos com uma situação insustentável (…), defrontam-se com um espaço e uma organização desenhados para rapazes. Nada existe, para além dos pequenos remendos que contam com a boa vontade do pessoal dos centros, que confira a necessária diferenciação naquilo que são as particularidades de género, quer na logística, quer no apoio psicológico, quer nas atividades, quer nas pequenas necessidades diárias” (p. 13). Esta preocupação, recente em Portugal, é algo que já tem vindo a ser discutido no contexto internacional, a par do desenvolvimento de uma investigação mais sensível ao género que tem vindo a demonstrar as idiossincrasias femininas nas expressões da transgressão. Falamos, por exemplo, na sensibilidade de exposição aos fatores de risco (e.g. o acesso à rua, a vigilância e controlo familiares, os maus tratos, as fugas de casa), nas questões desenvolvimentais e identitárias (e.g. a puberdade precoce, a ansiedade, a depressão e a gravidez), na importância dada às relações, na construção identitária e nas socializações de género, bem como no facto de responderem de forma diferente aos programas de intervenção e tratamento.

A consciência dessas diferenças deve fazer questionar as respostas institucionais de prevenção, intervenção e tratamento, que continuam a assentar em procedimentos baseados nos conhecimentos obtidos dos estudos feitos com rapazes e para os problemas dos rapazes. Como resultado, muitas das necessidades específicas das raparigas não são formalmente consideradas e avaliadas.

A literatura existente sobre esta matéria tem procurado mostrar que as soluções mais promissoras não passam nem por continuar a forçar as raparigas para um sistema projetado para rapazes, nem simplesmente separar os adolescentes infratores em razão do género, mas criar um ambiente (pela seleção do espaço, pelo recrutamento e formação dos/as profissionais, pelo desenvolvimento de programas, conteúdos e materiais) que reflita uma compreensão situada da vida de rapazes e raparigas e responda aos seus pontos fortes e desafios [3][4][5]. A este respeito, parece-me importante e útil fazer aqui alguns esclarecimentos, críticas e apontar algumas vantagens e perigos que se colocam ao desenvolvimento de programas com foco nas diferenças de género.

Começamos, desde logo, pelo termo “programas específicos de género” que tem sido interpretado como significando “para raparigas”, e esta situação tem trazido alguma controvérsia. Uma delas refere-se à questão da igualdade de tratamento. É importante reconhecer que igualdade não significa necessariamente equidade. Ou seja, garantir igualdade de tratamento não é providenciar a mesma intervenção e os mesmos programas para rapazes e raparigas, mas assegurar as mesmas oportunidades que reconheçam as diferentes necessidades, interesses e experiências de vida de rapazes e raparigas. A existência de diferentes programas não deve ser visto como a evidência de um viés de género, mas como uma forma de garantir igualdade de tratamento para ambos os sexos.

Outra controvérsia prende-se com a resposta à questão: o que se ganha e o que se perde quando dizemos que as raparigas são diferentes dos rapazes? Sem dúvida que ganhámos muita coisa em desenvolver programas com foco no género, como por exemplo: reconhecer que os caminhos das raparigas pelo sistema de justiça juvenil podem ser diferentes dos rapazes; prevenir comportamentos transgressivos e criminais no futuro e quebrar lógicas de intergeracionalidade; repensar e examinar as noções de género na delinquência, que continuam a ser colonizadas pela definições de delinquência masculina; fazer dialogar a literatura específica de género e a literatura do what works, que se consolidam em torno de objetivos diferentes; e contribuir para uma nova visão do sistema de justiça juvenil. Não podemos descurar que há experiências que não têm necessariamente de evidenciar distinções de género, mas sim manifestações de diferentes normas sociais e tratamentos diferenciados. Perdemos algumas coisas se não estivermos atentos/as aos riscos da essencialização das diferenças de género (retratadas como inerentes, imutáveis e biologicamente determinadas), que reificam a construção social dessas diferenças e ignorem as interseções do género com a classe social, a etnia, a raça, a religião, etc.; a isto junta-se as utilizações políticas e a construção de planos sexistas, que solidificam mitos.

Se é unânime, entre os/as investigadores/as, a importância do desenvolvimento de respostas sensíveis ao género e de programas desenhadas para raparigas no sistema de justiça juvenil, a investigação empírica sobre a sua eficácia é ainda escassa [5] e, no caso português, inexistente. Neste contexto, o desenvolvimento de uma agenda de investigação e intervenção sobre esta matéria parece-me não só cientificamente relevante, como politicamente enquadrada. É fundamental mais informação sobre os padrões de desenvolvimento feminino, a natureza dos seus fatores de risco e de proteção e a eficácia da intervenção de forma a que legisladores, políticos e profissionais possam providenciar serviços adequados. Esta é uma tarefa complexa e exigente que implica mudanças a todos os níveis, começando pelo exame crítico dos nossos próprios pressupostos e estereótipos sobre as raparigas no sistema de justiça juvenil.

Notas

[1] Duarte, V. (2012), Discursos e percursos na delinquência juvenil feminina, Famalicão: Editora Húmus.

[2] CFCE (2012) , Relatório da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização de Centros Educativos 2012. Disponível em URL: <http://www.sg.mj.pt/sections/noticias/relatorio-sobre-centros>.

[3] Bloom, B., Owen, B., & Covington, S. (2003), Gender-responsive strategies: Research, practice, and guiding principles for women offenders, Washington, DC: National Institute of Corrections.

[4] Chesney-Lind, M., Morash, M., & Stevens, T. (2008), Girls’ troubles, girls’ delinquency, and gender responsive programming: A review, The Australian and New Zealand Journal of Criminology, 41 (1), pp. 162-189.

[5] Zahn, M. et al. (2009), Determining what works for girls in the juvenile justice system: A summary of evaluation evidence, Crime and Delinquency, 55, pp. 266-293.

 

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