Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime
Título do artigo: Desmoralização e teoria social
Autor: António Pedro Dores
Filiação institucional: ISCTE-IUL
E-mail: antonio.dores@iscte.pt; http://iscte.pt/~apad/novosite2007
Palavras-chave: crise, estado, sociedade, moral.
As sociedades do Sul da Europa, atacadas pelos especuladores e pelos seus próprios parceiros da União Europeia, revelam-se impotentes para conduzir os seus próprios destinos. O Estado-Nação é agora – pelo menos aparentemente – um entreposto de políticas ditadas pelos credores financeiros contra os credores nacionais, em particular os trabalhadores mas sobretudo os que por qualquer razão não podem trabalhar. A economia ditada pelos interesses financeiros torna odiosos os consumidores que se tornam insolventes porque o Estado lhes retira direitos tomados por certos até há poucos meses. Na Grécia batalha-se, Portugal resigna-se, Espanha auto-determina-se, Itália entrega-se, mas nenhuma destas tácticas revela ser capaz de revelar uma luz no fundo do túnel. As sociedades dos PIGS [1] podem ter deixado de ser relevantes para a decisão política, como de resto acorreu noutras partes do mundo onde os povos foram submetidos à lógica imperial do capitalismo ocidental.
Com a globalização, também as sociedades ocidentais estão a experimentar a irrelevância das sociedades, dos povos nacionais, da capacidade de determinação de políticas públicas. Ao contrário do que aconteceu durante a Guerra Fria, não há necessidade dos poderes instituídos de desenvolverem sistemas de legitimidade – contratos sociais, Estado Social – capazes de garantir uma reserva estratégica de solidariedade entre o campo ocidental em conflito. Ironicamente, da vitória do Estado Social contra o Estado totalitário, que se auto-desmoronou na URSS, está a resultar a repressão da sociedade e o abandono pelo Estado das respectivas funções sociais. Quiçá a caminho de uma experiência totalitária diferente daquelas já conhecidas na Europa.
Os movimentos sociais animam-se e inovam. As instituições permanecem sem sofrerem grandes ataques, na medida em que não se vislumbram modelos de gestão alternativos idealizados pelos movimentos sociais como alternativas possíveis ao modo actual de fazer a gestão estatal. Mas o definhamento da sociedade, da solidariedade entre os povos europeus, da solidariedade entre gerações, da solidariedade entre os empregados e os desempregados, da solidariedade entre os que habitam condomínios fechados e bairros problemáticos, da solidariedade entre os activistas partidários e os não partidários, parece evidente e até perigoso. A quase indiferença com que as instituições do Estado reagem às manifestações cívicas revela uma mudança de carácter da relação entre os movimentos sociais e o Estado. Este tornou-se, talvez, apenas uma teia onde os esforços sociais para a sobrevivência se esgotam, até que as pessoas se habituem à ideia de um retrocesso ao nível da qualidade de vida – saúde, segurança, bem-estar, efeitos práticos da iniciativa individual – imposta pela crescente desigualdade de rendimentos, cf. Wilkinson e Pickett (2009).
Perante uma tal transformação do objecto de estudo principal das teorias sociais, há que organizar a reformulação geral da teoria de maneira a poder dar conta de tamanha mudança. Não é razoável manter o horizonte de que a vontade humana expressa pela razão, seja através de declarações políticas seja através das dinâmicas institucionais animadas e controlados por movimentos sociais mais ou menos partidários, será capaz de conduzir os nossos destinos colectivos, independentemente dos interesses de uma ordem social dominante praticamente estanque, constituída por grupos de financeiros capazes de capturarem aparelhos políticos, redes de economia paralela que precisam de lavar dinheiros sujo, indústrias do espectáculo e do consumismo. Além dos seus aliados de interesses – por onde o dinheiro circula a rodos – essa ordem global dominante é capaz de anular a acção dos sistemas judiciais, incapazes de lutar contra as máfias e os crimes de colarinho branco e, sobretudo, incapazes de assegurar a liberdade e os direitos dos cidadãos, perseguidos pelos credores bancários ao mesmo tempo que vêem os seus direitos negados pelos Tribunais Superiores – como no caso do Tribunal Constitucional em Portugal que admitiu suspender a lei para permitir o esbulho dos créditos dos salários dos funcionários públicos, de que deu conta a Associação de Juízes.
Mais do que a moral social, é a moral das instituições, a começar pela Justiça, que está desmoralizada. O Direito parece ter deixado de assegurar segurança nas decisões judiciais e fidelidade aos valores democráticos. O slogan segundo o qual o Ocidente seria a referência mundial da democracia, dos estados de direito e dos direitos humanos soa a oco, tal como de resto aqui e ali, afinal de uma forma mais generalizada do que se teria dado conta o institucionalismo, os desígnios institucionais foram sendo subvertidos – o dinheiro da segurança social usado para financiar o orçamento de Estado, por exemplo. Ao ponto dos movimentos de contestação atacarem precisamente aí: a escolha das palavras de ordem “Democracia já!” ou “99%” significa precisamente a falha naquilo que tem sido e continua a ser apresentado para o exterior e para o interior como a moral social legítima, naquilo que tem de fundamental. A incapacidade de diálogo entre os manifestantes e as instituições, ao contrário do que terá ocorrido na Islândia, confirma a estanquicidade das partes em presença. E a massa determinante para o futuro parece ser o dinheiro e não os desejos e a vontade das pessoas.
O herdeiro da Escola de Frankfurt, Axel Honneth (2007), entende a sua contribuição para a continuidade da tradição intelectual em que se integra como um apelo da teoria à prioridade da sociologia como forma de manter uma perspectiva de emancipação.
Marx fez a crítica da economia política como ideologia burguesa. Opôs-lhe uma ideologia proletária, actualmente pervertida – como muitas outras instituições – como uma economia política favorável à intervenção do Estado, mas substancialmente igual à ideologia burguesa. É certo que as condições objectivas para a revolução estavam reunidas no primeiro quartel do século XX, mas o que emergiu foi o totalitarismo e a indiferença perante o sofrimento alheio, a que Hannah Arendt chamou a banalidade do mal. A primeira geração da Escola de Frankfurt, que viveu o nazismo de perto, concentrou-se nas práticas de alienação que permitiam e favoreciam a persistência da ideologia burguesa, mesmo no campo dos movimentos operários.
Habermas descobre na promoção do diálogo político e no espaço comunicacional utopicamente desimpedido a esperança da destilação da vontade e da razão colectivas, fontes de emancipação. Caso as instituições fossem, como poderiam ser, formas de realização dos valores consensualizados assim construídos. Honneth propõe-se amplificar os campos cultural e comunicacional, pois nem a estética nem a democracia lhe parecem suficientes para assegurar a esperança no devir. O autor alemão enfatiza o facto de haver uma tradição de estudos da moral própria da sociologia, iniciada por Durkheim, e que merece ser reanimada, em função da normatividade adquirida pelos Direitos Humanos ao reclamarem universalmente e de forma individual o respeito pela dignidade de cada pessoa
Notas
[1] Acrónimo de Portugal, Irlanda e Itália, Grécia e Espanha, construído em língua inglesa.
[2] Honneth, Axel (2007/2000), Disrespect-The Normative Foundation of Critical Theory, Polity Press.
[3] Wilkinson, Richard; Kate Pickett (2009), The Spirit Level – why more equal societies almost always do better, Penguin.






Interessante este texto. Na Bahia recentemente teve a greve da Polícia Militar que configura um começo de mudança de negociação entre as classes e o estado, um novo paradigma, quando foi necessário representantes da sociedade como um arcebispo e uma desembargadora mediar tal negociação entre as partes. Isto decorreu com a aplicação da lei prendendo um dos líderes reincidente de 2012, aguçou a manifestação, e, quando ia pegar fogo, tais representantes se viram no dever de intervir, acalmando, organizando e conscientizando, assim a greve terminou beneficiando o todo, ou seja, governo, policiais e sociedade.