O computador Magalhães no ensino básico: um recurso educativo adiado ou uma oportunidade perdida pelas escolas?

Dimensão analítica: Educação, ciência e tecnologia

Título do artigo: O computador Magalhães no ensino básico: um recurso educativo adiado ou uma oportunidade perdida pelas escolas?

Autora: Ana Matias Diogo

Filiação institucional: Universidade dos Açores

E-mail: adiogo@uac.pt

Palavras-chave: novas tecnologias, escolas, famílias.

A introdução do computador Magalhães no 1º ciclo do ensino básico, com início no ano lectivo 2008/09, constituiu uma das bandeiras políticas do Plano Tecnológico da Educação dos XVII e XVIII Governos Constitucionais que deixou poucos na indiferença. Suspensa a medida, com a chegada de um novo governo, os espíritos parecem ter-se aquietado, a avaliar pela escassez de notícias e de comentários na comunicação social. Há, contudo, uma avaliação que está por fazer. Sem a pretensão de concretizá-la neste espaço, deixamos aqui, ainda assim, algumas notas de pesquisa e reflexão.

Contrariamente a muitas das políticas e iniciativas de incentivo ao uso das novas tecnologias na educação, circunscritas ao espaço escolar, esta medida teve a particularidade de amplificar a sua intervenção, abarcando simultaneamente os contextos escolar e familiar, através da distribuição de computadores portáteis às famílias, com o objectivo de promover o seu uso tanto na escola como em casa, desde o início da escolaridade.

Uma das potenciais vantagens desta medida prende-se com a inclusão digital das crianças dos grupos sociais mais desfavorecidos. Efectivamente, o programa e-escolinha parece ter tido um efeito de democratização do acesso às novas tecnologias. Antes do início do programa, a relação alunos/computador, no 1º ciclo do ensino básico público do Continente, registava valores que inviabilizavam a plena integração do computador no trabalho quotidiano dos alunos na sala de aula: 26,7 em 2001/2002 e 11,4 em 2007/2008 [1]. Com a distribuição do portátil em 2008/2009, o valor passa para 1,1 e no ano seguinte para 1,0 [1], permitindo o uso individualizado de computadores nas actividades lectivas. Em sentido idêntico apontam dados de dois estudos de caso, realizados na Região Centro e na Região Autónoma dos Açores, que mostram uma elevada adesão das famílias mais desfavorecidas à iniciativa [2]. No segundo estudo observou-se, ainda, que a percentagem de crianças para quem o portátil constituiu a primeira oportunidade de acesso a computadores aumentava à medida que se descia na pirâmide social [3].

Mas será que esta democratização de acesso se está a traduzir numa verdadeira democratização de usos das novas tecnologias com efeito nas aprendizagens escolares?

As desigualdades sociais e as relações de poder subjacentes à integração das tecnologias da informação e da comunicação em múltiplos sectores sociais, designadas na literatura anglo-saxónica por “digital divide” e na literatura portuguesa como info-exclusão, divisão digital ou fosso digital [4], têm sido, precisamente, salientadas como um dos principais desafios que se colocam à sociedade da informação [5]. Se num primeiro momento o que parecia estar em causa era a clivagem entre os que têm e os que não têm acesso a estas tecnologias, nos últimos anos o conceito alargou-se, abarcando outras formas de clivagem relativas às competências, usos e efeitos [4].

Relativamente aos usos por parte das novas gerações, tem-se verificado que o computador e a Internet em casa servem fundamentalmente para fins lúdicos, apesar dos pais fornecerem esses recursos aos filhos por razões que se prendem com a sua mobilização na carreira escolar [6][7]. Esta utilização, predominantemente lúdica, desviando os jovens das aprendizagens escolarmente rentáveis, explicará o facto do uso do computador em casa, por si só, surgir correlacionado negativamente com os resultados dos alunos, depois de controladas outras variáveis como a origem social [8].

A investigação mostra, igualmente, que a origem social constitui um factor diferenciador dos usos dados a estes equipamentos pelas crianças e jovens. Um estudo conduzido a nível nacional mostrou que é nas famílias mais escolarizadas e das fracções de classe mais privilegiadas que é notório um uso mais educacional, moldado pelos pais [6]. A mediação parental é, deste modo, fundamental para orientar os filhos para um uso das tecnologias escolarmente mais rentável, embora essa mediação surja condicionada pela condição social.

O que nos parece particularmente interessante notar é que quando o uso educacional se estende a diversos grupos sociais esse pode ser igualmente proveitoso. Análises de âmbito internacional, tendo por base dados do PISA para o ano 2000, encontraram uma correlação positiva entre os resultados dos alunos e os usos educacionais e comunicacionais das TIC em casa (utilização de e-mail, consulta de páginas na Internet e posse de software educativo em casa), controlando a origem social [8]. Um outro estudo, realizado a propósito de um programa governamental de facilitação do acesso a computadores, destinado a famílias desfavorecidas na Roménia, revelou que a monitorização dos pais, nomeadamente, através do estabelecimento de regras positivas em relação ao tempo de estudo, reduziam os efeitos negativos do uso das novas tecnologias no resultados escolares [9].

No que concerne ao computador Magalhães, não dispomos de análises sofisticadas como a dos estudos acima referidos para testar o mesmo tipo de efeitos. Mas os resultados anteriores levam-nos a interpelar o papel que a relação entre escola e família poderia ou poderá desempenhar, tanto mais que está em causa um computador portátil que apresenta a peculiaridade de circular entre os dois contextos. Nesse sentido, questionamos: em que medida é que a escola tem procurado enquadrar o uso do computador no trabalho escolar, na escola e em casa, de forma articulada?

Os dados dos estudos de caso anteriormente citados [2] apontam, no entanto, para uma reduzida adesão à utilização do portátil por parte das escolas, sendo notória a existência de um fosso entre o que é a realidade de utilização do computador Magalhães em casa, bastante mais abrangente, e a realidade da sua utilização na escola, muito circunscrita. O trabalho quotidiano nas salas de aula parece não ter sofrido o impacto significativo da distribuição dos portáteis aos alunos, na medida em que estes são usados apenas pontualmente. O que, aliás, vai ao encontro de outros estudos realizados em relação ao uso das novas tecnologias em geral [6][10]. De igual modo, segundo os mesmos estudos de caso [2], o computador Magalhães não é um recurso amplo e regularmente usado para os trabalhos de casa, sendo, por outro lado, muito residualmente um assunto tratado nos contactos entre famílias e professores.

Tal como que foi denunciado pela Sociologia da Educação nos anos 60/70, através das teorias da reprodução cultural [11][12], mais uma vez, a passividade da escola parece deixar espaço para a reprodução social funcionar e ser legitimada.

Notas

[1] GEPE [Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação] (2011), Educação em números – Portugal 2011, Disponível em URL [Consult. 27 Novembro 2011]: <http://www.gepe.min-edu.pt>.

[2] Silva, Pedro; Diogo, Ana (no prelo), Usos do computador Magalhães entre a escola e a família: sobre a apropriação de uma política educativa em duas comunidades escolares, Arquipélago – Ciências da Educação, nº 12.

[3] Diogo, Ana; Gomes, Carlos; Barreto, António (2010), O computador Magalhães entre a escola e a família, numa escola Básica Integrada de Ponta Delgada: um olhar sociológico sobre seus efeitos. Relatório de Progresso II, Ponta Delgada, Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores.

[4] Cruz, João (2008), Evolução do fosso digital em Portugal 1997-2007: uma abordagem sociológica, Dissertação de mestrado, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa.

[5] Lyon, David (1992 ), A sociedade da informação, Oeiras, Celta.

[6] Almeida, Ana Nunes; Delicado, Ana; Alves, Nuno (2008), Crianças e Internet: Usos e Representações, a Família e a Escola, Lisboa, ICS. Disponível em URL [Consult. 19 Novembro 2009]: < http://www.crinternet.ics.ul.pt/icscriancas/content/documents/relat_cr_int.pdf >.

[7] Kerawalla, Lucunda; Crook, Charles (2002), Children’s Computer Use at Home and at School: context and continuity, British Educational Research Journal, 28(6), pp. 751-771.

[8] Fuch, Thomas; Wossmann, Ludger (2004), Computers and students learning: bivariate and multivariate evidence on the availabiality an use of computers at home and at school, Brussels Economic Review, 47(3/4), pp. 359-385. Disponível em URL [Consult. 15 Novembro 2009]: <http://bib11.ulb.ac.be:8080/dspace/bitstream/2013/11947/1/ber-0300.pdf >.

[9] Malamud, Ofer; Cristian, Pop-Eleches (2010), Home computer use and the development of human capital, Paper. Disponível em URL [Consult. 27 Novembro 2011]: <http://www.columbia.edu/~cp2124/papers/computer.pdf >.

[10] Fluckiger, Cédric (2007), L’appropriation des TIC par les collegiens dans les spheres familieres et scolaires, Dissertação de doutoramento, École Normale Superieure de Cachan, Cahan. [Consult. 21 Dezembro 2009]: <Disponível em http://tel.archives-ouvertes.fr/docs/00/42/22/04/PDF/Fluckiger2007.pdf>.

[11] Bourdieu, Pierre; Passeron, Jean-Claude (1964), Les Héritiers: Les étudiants et la Culture, Paris, Éditions Minuit.

[12] Bourdieu, Pierre; Passeron, Jean-Claude (1970), A Reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino, Lisboa, Editorial Vega.

 

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