Dimensão analítica: Mercado e condições de trabalho
Título: Tendências pesadas da evolução do Estado Social em Portugal [1]
Autor: João Freire
Filiação institucional: Sociólogo. Professor Emérito do ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa. Investigador no CIES-IUL.
E-mail: joao.freire@mail.telepac.pt
Palavras-chave: emprego público, despesa pública, Estado social
No presente ensaio, procura-se quantificar a evolução de crescimento do Estado, na óptica da sua “força de trabalho”e da despesa pública. Consideraram-se os últimos sessenta anos porque este lapso de tempo permitia abranger situações muito diferenciadas: ditadura e democracia; império colonial e integração europeia; etc.
Este amplo lapso de tempo permitiu a utilização dos dados quantitativos recolhidos em momentos censitários, a intervalos de vinte anos. As fontes utilizadas foram essencialmente os Censos (com a excepção dos dados populacionais de 2008, os mais recentes então disponíveis) e as Contas Gerais do Estado, mas também se recorreu às fontes relativas aos antigos territórios ultramarinos, aos Orçamentos Gerais do Estado e a outras fontes estatísticas de âmbito mais circunscrito.
A variável do emprego público foi uma das mais difíceis de preencher, pois só recentemente existem dados específicos convenientemente organizados, ainda assim sujeitos a alguma desconfiança metodológica. Nestas condições, considerámos como fazendo parte da componente “soberania” do Estado a totalidade do pessoal afecto a um conjunto fixo de ministérios (defesa, justiça, finanças, administração interna, etc.), o mesmo ocorrendo para a função “social” (educação, saúde, etc., a que agregámos também as funções culturais) e para a função “económica” (obras públicas, etc.), em vez de uma classificação mais fina e mais próxima da actividade profissional dos agentes.
Algumas observações analíticas mais importantes
Começando pelos dados demográficos e no que toca ao emprego público, em valor absoluto, ele apresenta uma linha de tendência ascendente, atingindo o seu máximo em 1991 e verificando-se que em 2008 já teria declinado. Em valor relativo, a sua percentagem face aos activos (bem como à população total) acompanha essa mesma linha de evolução com um pico em 1991 e uma descida em 2008.
Quanto à distribuição interna do emprego público o fenómeno mais relevante é indubitavelmente o crescimento do pessoal afecto às funções sociais do Estado (sobretudo educação e saúde, por esta ordem de importância). Esta é uma tendência de fundo que não deve atribuir-se exclusivamente à mudança de regime político ocorrida em 1974-76. De facto, se considerarmos os dispositivos de previdência social pública, pode datar-se do início da década de 60 o início da construção entre nós do Estado-providência.
Assim, verifica-se, para as funções de soberania, em números absolutos, uma evolução ascendente com um pico notável em 1970 (auge do esforço na defesa e desenvolvimento do ultramar), seguindo-se depois uma contínua queda desta categoria de funcionários. Porém, em termos de distribuição percentual, a evolução apresenta-se com um perfil um pouco diferente, com uma quase estabilização alta (acima dos 60%) nos dois primeiros momentos, uma descida abrupta para pouco mais de 20% entre 1970 e 1991 (muito por conta da “desmilitarização” da sociedade), que se mantém em nível vizinho vinte anos depois.
No respeitante às funções sociais, é praticamente o inverso que acontece: em percentagem do total, estes funcionários estagnam nos 20% entre 1950 e 1970, dão um enorme salto para os 68% duas décadas mais tarde, mantendo-se estáveis em 2008. Mas, em valor absoluto, a subida é contínua até 1991, verificando-se um decréscimo dos efectivos no último ano analisado.
Finalmente, no que toca ao pessoal afecto às funções económicas, observa-se uma evolução ainda diferenciada de todas as anteriores: subida de 1950 para 1970, a que se segue uma descida contínua dos seus quantitativos, tanto em números absolutos como em valores relativos.
Considerando agora os dados económicos correspondentes a estes mesmos momentos históricos (1950, 1970, 1991 e 2008), podemos dizer que também na despesa primária do Estado observámos uma clara tendência ascensional das despesas sociais, à custa (e termos relativos) dos gastos com a soberania e com a função económica directa do Estado.
Num terceiro passo da nossa análise, integrámos os anteriores dados demográficos e económicos para se obterem os custos unitários de produção dos serviços públicos (despesas divididas pelo número de funcionários). Além disto, para comparar directamente os valores monetários em causa nos quatro momentos históricos, recalculámos aproximadamente os resultados precedentes, agora a preços constantes. Daqui saiu a noção de que o custo unitário do emprego público global se terá efectivamente multiplicado por dez, ao longo dos sessenta anos transcorridos.
Quanto à evolução dos mesmos custos unitários segundo a função desempenhada, confirma-se que a função social apresenta uma subida constante dos seus custos de produção, sobretudo notável entre os anos de 1970 e 1991.
Três notas finais
Estes custos unitários de produção dos serviços públicos, latamente considerados, não podem ser tomados, só por si, como indicadores do melhor ou pior desempenho do Estado no cumprimento das missões que a sociedade lhe atribui ou reconhece, sobretudo porque lhes falta o contraponto dos benefícios usufruídos pela colectividade nacional com tais serviços, alguns dos quais serão mesmo impossíveis de quantificar. Mas eles constituem um elemento muito importante a ter em conta na avaliação que deve ser feita das tendências da evolução que tem sido trilhada, alertando-nos para as possíveis consequências futuras e permitindo eventuais reorientações para correcção dos aspectos mais negativos verificados.
À vista dos dados apresentados, a pergunta mais premente e incisiva que inevitavelmente se fará é a de saber se estamos perante um crescimento inexorável do “Estado social” e se ele é sustentável (e até quando); ou se, pelo contrário, já começou o reajustamento indispensável e, nesse caso, se ele será suficiente. As presentes dificuldades orçamentais e o endividamento excessivo (público e externo) de Portugal têm também muito a ver com este fenómeno.
Falámos de Portugal, mas o problema – que é político, em primeira e em última instância – é provavelmente idêntico nos países vizinhos e, no caso do conjunto europeu, esse é também um quadro onde poderão ser dados alguns passos significativos de resposta. Seria, assim, desejável que se realizassem análises comparativas e conjuntas da evolução histórica do peso do “Estado social” em vários países da Europa e dos seus respectivos desempenhos.
Nota
[1] Texto adaptado de um original publicado como CIES e-Working Paper nº 97/2010, 20 p., acessível em: http://www.cies.iscte.pt/wp.jsp.




