Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: Paradoxos e fragilidades na intervenção de uma Equipa Comunitária de Saúde Mental: breves ecos de uma pesquisa etnográfica
Autora: Cláudia Nogueira
Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
E-mail: claudia@ces.uc.pt
Palavras-chave: Equipa Comunitária de Saúde Mental, Desinstitucionalização, Políticas Públicas de Saúde Mental.
Com a Lei de Saúde Mental de 1963, Portugal assumiu um lugar de vanguarda no panorama europeu, posicionando-se como um dos países que mais precocemente criou bases legais para a implementação de um modelo comunitário de cuidados de saúde mental. Na prática, porém, os progressos têm sido muito escassos, não se verificando, ao longo dos anos, uma significativa alteração da hegemonia do modelo hospitalocêntrico/biomédico [1; 2; 3]. Nesse ponto, uma das principais lacunas diz respeito à constituição de Equipas Comunitárias de Saúde Mental (ECSM) [2].
Em termos teóricos, a proposta de criação de ECSM configura um dos principais pilares da operacionalização da filosofia de desinstitucionalização. Da leitura de vários documentos oficiais [e.g., 2; 4], torna-se claro o quanto os papéis atribuídos às ECSM traduzem uma intenção política de organização de um modelo bem distinto do modelo hospitalocêntrico hegemónico. Com o propósito de pôr fim a um modelo fechado, distante e fomentador de estigma e exclusão social, prevê-se a criação de equipas multidisciplinares comunitárias que implementem valores de proximidade e inclusão, com base num trabalho de articulação com uma diversidade de atores sociais, numa lógica direcionada não apenas para o tratamento de “doenças”, mas também para a integração social, prevenção e promoção da saúde mental [4].
Apesar de ser tida como uma proposta prioritária pela política de saúde pública, as ECSM são ainda muito escassas em Portugal. Igualmente escassa é a produção de conhecimento a respeito das mesmas, facto que me motivou a mergulhar neste campo de estudo, elegendo, para tal, uma das raras ECSM a operar no nosso país [3] – Equipa Comunitária que, de ora em diante, passo a designar por Equipa Y. Ao privilegiar o método etnográfico (em conjugação com entrevistas em profundidade), foi-me dada a possibilidade de acompanhar/observar a Equipa Y de uma forma bastante intensiva, o que resultou numa enorme riqueza de conteúdo e, portanto, numa análise muito ampla e profunda. Num espaço de redação tão curto como o presente, torna-se muito difícil sintetizar aqueles que são os principais resultados do estudo [3], pelo que, nas próximas linhas, o que trago são apenas brevíssimos ecos desse amplo trabalho. É ainda de sublinhar que me focarei no campo de análise que respeita aos paradoxos e fragilidades que envolvem a intervenção da Equipa Y, deixando de lado, neste artigo, as imensas virtualidades/potencialidades dessa mesma Equipa – as quais emergem, na respetiva análise, como elementos que lhe permitem dirimir (ou, pelo menos, atenuar) alguns dos efeitos negativos que resultam, precisamente, das (i)lógicas organizacionais, obstáculos e lacunas que enunciarei já em seguida.
Desde logo, da análise empreendida, sobressai muito nitidamente o quanto a dependência da Equipa Y em relação à Instituição Hospitalar (à qual se encontra vinculada) pesa no seu funcionamento, condicionando as suas potencialidades de intervenção. De facto, apesar das orientações políticas [2; 4] preconizarem a autonomia técnica e funcional das ECSM, na prática, não foram criadas as necessárias condições político-legais para a efetivação dessa autonomia, ficando essas Equipas sob a dependência financeira/administrativa de Centros Hospitalares. Assim aconteceu com a Equipa Y: criada sob a égide de um Centro Hospitalar, foi a partir desse Centro que se constituiu e organizou. Deste modo, todos os seus membros são profissionais vinculados à instituição hospitalar, o que faz com que tenham de repartir o seu tempo entre essa instituição e o serviço na comunidade. Esta ausência de exclusividade impõe grandes limites ao trabalho comunitário, refletindo-se tanto ao nível da capacidade de resposta quanto ao nível do suposto carácter multidisciplinar da Equipa. Com efeito, conforme tive oportunidade de verificar, na maior parte do tempo, a intervenção é realizada apenas por profissionais de psiquiatria (médico/a e enfermeiros/as), verificando-se grandes limitações ao nível da frequência de profissionais de serviço social e de psicologia. É ainda de realçar que determinadas áreas disciplinares (terapia ocupacional, psicopedagogia e psicomotricidade), igualmente recomendadas pelas orientações políticas oficiais, nunca chegaram a marcar presença na Equipa Y.
Para além de afetar a disponibilidade de recursos humanos, a dependência da Equipa Y relativamente à instituição hospitalar revela-se igualmente problemática pelo modo como determinadas lógicas de funcionamento/administração hospitalar (concebidas especificamente para esse contexto) vulnerabilizam (ou são suscetíveis de vulnerabilizar) o trabalho na comunidade. Ao não se coadunarem com as necessidades específicas do contexto comunitário, algumas dessas lógicas acabam mesmo por comprometer a intervenção aí desenvolvida. Uma situação ilustrativa é a que respeita aos registos dos atos de enfermagem. Aquando da realização da pesquisa, a Equipa Y tem à disposição a mesma plataforma informática existente no contexto hospitalar. Não estando essa plataforma adaptada às características do trabalho comunitário, o esforço e tempo requerido para a inserção dos registos revela-se incompatível com o ritmo do trabalho domiciliário, o que se traduz num obstáculo adicional ao bom fluxo das práticas de cuidado propriamente ditas.
Aos constrangimentos atrás descritos, a Equipa Y vê ainda acrescer a enorme carência de respostas e equipamentos psicossociais na sua área sociogeográfica de intervenção. Estando em causa uma região caracterizada por um elevado envelhecimento da população e por grandes carências socioeconómicas, os equipamentos sociais mais comuns são os que se dirigem a pessoas idosas (Lares e Centros de Dia), rareando as respostas especificamente desenhadas e dirigidas à saúde mental. Deste modo, frequentemente, em face de problemáticas sociais graves (e.g., isolamento social, sobrecarga ou abandono familiar, falta de autonomia na gestão da vida diária, etc.), a única possibilidade que os/as profissionais da Equipa Y vislumbram é a de encaminharem as pessoas para Lares ou Centros de Dia. Muitas vezes, dada a lotação desses equipamentos, o que vislumbram é tão-somente um enorme vazio de respostas.
Se o primeiro nível de constrangimentos se associa, sobretudo, às (paradoxais) lógicas de constituição e organização que sustentam a existência e funcionamento da Equipa Comunitária, já o segundo nível de constrangimentos relaciona-se com a estrutural carência de respostas e equipamentos psicossociais na própria comunidade – uma problemática que traduz, enfim, de forma mais lata, o escasso investimento público no campo da saúde mental e na tão preconizada desinstitucionalização.
Conforme tive oportunidade de atestar no decurso da pesquisa etnográfica, é notória a forma como os/as profissionais da Equipa Y se encontram imbuídos/as de um forte compromisso com a ética do cuidado, pautando as suas práticas por uma visão holística e por uma conceção de proximidade que vai muito para lá da simples ideia de proximidade geográfica. No entanto, ao nível dos meios e recursos organizacionais disponíveis para a sua intervenção, o que se percebe é a persistência de um modelo empobrecido, enfraquecido e eminentemente biomédico, de onde se ausentam condições favorecedoras de processos de autêntico recovery e de plena inclusão social.
Notas
[1] Hespanha, P., Portugal, S., Nogueira, C., Pereira, J.M., & Hespanha, M.J. (2012). Doença Mental, Instituições e Famílias – Os Desafios da Desinstitucionalização em Portugal. Coimbra: Edições Almedina.
[2] Comissão Técnica de Acompanhamento da Reforma da Saúde Mental (2017). Relatório da Avaliação do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 e propostas prioritárias para a extensão a 2020. Lisboa: Ministério da Saúde.
[3] Nogueira, C. (2023). Para lá dos silenciamentos. Sofrimento mental, integralidade e (im)possibilidades de uma ecologia de cuidados. Tese de Doutoramento em Sociologia. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
[4] Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental (2007). Relatório – Proposta de Plano de Acção para a Reestruturação e Desenvolvimento dos Serviços de Saúde Mental em Portugal – 2007-2016. Obtido de https://extranet.who.int/mindbank/item/3159
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