Memória, história e resistência

Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social

Título do artigo: Memória, história e resistência

Autor: André Costa Pina

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

E-mail: andrecostapina@gmail.com

Palavras-chave: Memória, História, Resistência.

 

Ao cumprirmos meio século de democracia, o natural distanciamento temporal face ao período do Estado Novo trouxe consigo uma série de reinterpretações do passado. Este é um processo inevitável, uma vez que há uma renovação geracional e um afastamento das novas gerações face aos acontecimentos que marcaram a Revolução do 25 de abril de 1974. Além do mais, muitas das mulheres e dos homens que contribuíram com a sua vida pela democracia ficaram no esquecimento. Atualmente, cabe às novas gerações recolher os fragmentos das memórias e construir uma memória política ou memória nacional.

No domínio da sociologia histórica, a socióloga Marie-Claire Lavabre realçou a importância do debate sobre os significados que atribuímos ao conceito de “memória”. Geralmente, no nosso senso-comum, compreendemos a memória como a “faculdade de conservar e lembrar os estados de consciência passados” [1]. No entanto, Lavabre desconstruiu esta noção ao salientar a oposição concetual entre a história e a memória. Enquanto a história se prima pelo método científico que procura estabilizar o passado e torná-lo inteligível, já a memória remete-nos para uma relação com o passado focada nos interesses que não pertencem, necessariamente, ao conhecimento, mas antes, à identidade e aos processos de construção de uma identidade. Por outras palavras, enquanto a história atua no domínio do método científico, a memória é moldada de forma a legitimar uma narrativa identitária. Assim, a memória resulta das relações dos indivíduos no seio dos grupos que depois se manifesta através das memórias individuais [2]. Maurice Halbwachs, na sua perspetiva durkheimiana, refere, ainda, que as memórias coletivas são um produto dos grupos. Este autor realça, igualmente, o papel das celebrações públicas e as festividades coletivas no fortalecimento da memória histórica. Por exemplo, através das manifestações anuais do 25 de abril, em que a sociedade portuguesa reforça os laços sociais que conservam a memória deste evento histórico.

A partir da análise de Lavabre e Halbwachs, compreendemos, então, como os debates sobre as memórias e os usos sobre o passado nunca são pacíficos. A memória é, em larga medida, um elemento legitimador das práticas políticas presentes, o que torna a memória num objeto de disputas políticas. Deste modo, observamos, recentemente, como os símbolos da resistência democrática e das conquistas de abril têm sofrido algumas pressões, com o intuito de reconstruir o imaginário revolucionário e a história que compõe a nossa memória nacional. Para alguns partidos políticos é, em certa medida, imperativo assentar os pilares da República em novas datas históricas. Saliente-se o caso do debate em torno do 25 de novembro de 1975, suscitado em 2023: alguns partidos pretendiam estabelecer esta data, e os seus acontecimentos, como a “verdadeira” data fundadora da democracia portuguesa, em oposição ao 25 de abril.

Para além destas disputas recentes pela memória da revolução, em torno dos grandes acontecimentos históricos, por vezes ficam esquecidas as mulheres e os homens que participaram nos acontecimentos que instituíram a nossa democracia. Durante 48 anos de ditadura, milhares de pessoas resistiram das mais variadas formas perante um regime político autoritário, recusando-se a ficar paradas face às privações de liberdades e à crescente fascização do Estado Português. Neste domínio, as ciências sociais e humanas têm um papel vital em resgatar do esquecimento as memórias biográficas e coletivas da resistência.

Deparamo-nos, através dos percursos da investigação, com centenas de histórias de vida que se encontram dispersas pelos arquivos – em cadastros da PVDE, cartas, retratos, manifestos, livros de memórias, biografias e jornais – e que nos permitem recolher testemunhos da resistência à ditadura portuguesa. Por um lado, exemplos de assassinatos, como é o caso de Alfredo Ruas [3], jovem padeiro que residia no Porto e que foi assassinado pela Polícia Internacional Portuguesa, em Lisboa, no ano de 1932, por se manifestar publicamente contra a ditadura. Por outro lado, inúmeros relatos de torturas durante os extensos interrogatórios das polícias políticas, tais como, espancamentos, privações de sono e choques elétricos, impedindo o acesso dos presos a condições de higiene básicas. Aliás, na “Colónia Penal” do Tarrafal, em Cabo Verde, sem acesso a água potável ou a medicação para combater a malária, o Estado português levou à morte dezenas de homens, como Mário Castelhano e Bento Gonçalves.

Neste seguimento, além das investigações académicas, os museus da resistência têm um papel fulcral na defesa da nossa memória perante falsificações e deturpações dos acontecimentos históricos. Deste modo, é essencial estabelecer pontos de contacto e de diálogo entre a investigação académica e as instituições, promovendo iniciativas capazes de chegar a um público mais vasto. Este pensamento enquadra-se no manifesto de Michael Burawoy sobre a sociologia pública e a importância da ligação da sociologia à sociedade civil, pois a ciência deve permitir alargar a reflexividade crítica e influenciar o debate público em torno da nossa memória [4]. Ao mesmo tempo, o diálogo com os museus da resistência, bem como outros organismos, permite-nos ir além da academia e estender o nosso serviço público, nomeadamente, através do contacto direto com as escolas. Contudo, em Portugal, estes projetos são recentes, ainda que a história de resistência se estenda por todo o país. O Museu do Aljube, em Lisboa, surgiu apenas em 2015, e a Fortaleza de Peniche passou recentemente a Museu da Resistência, devendo reabrir em abril de 2024. Em suma, temos um longo caminho a percorrer no que diz respeito à preservação da nossa memória coletiva.

Notas:

[1] Lavabre, M. (1994), Le Fil Rouge. Sociologie de la mémoire communiste, Paris: Fondation Nationale des Sciences Politiques.

[2] Halbwachs, M. (1992) On Collective Memory, Chicago: University of Chicago Press.

[3] Alfredo Ruas [ou José Ruas Ferreira]. (s.d.). Museu Do Aljube. Consultado no dia 17 março, 2024: https://www.museudoaljube.pt/doc/alfredo-ruas-ou-jose-ruas-ferreira/

[4] Burawoy, M. (2004). For Public Sociology. American Sociological Review, (70) 1, 4-28. https://doi.org/10.1177/000312240507000102

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