Porque só é conhecimento quando é publicado: manifesto pela integridade da publicação académica

Edição: 3ª Série de 2023 (dezembro 2023)

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: Porque só é conhecimento quando é publicado: manifesto pela integridade da publicação académica

Autor/a: Susana Magalhães, Diogo Guedes Vidal, Marina Prieto Afonso Lencastre

Filiação institucional: 1 Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S-UP) e Universidade Fernando Pessoa; 2 Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra; 3 Universidade Fernando Pessoa

E-mail: susana.magalhaes@i3s.up.pt; diogo.vidal@uc.pt; mlencast@ufp.edu.pt

Palavras-chave: Integridade Académica, Publicar ou Perecer, Ciência e Conhecimento.

A ciência e a academia vivem tempos desafiantes que obrigam a repensar o valor do conhecimento e da sua preservação. A publicação desenfreada, a fraude científica, as autorias indevidas, o plágio e a falta ou desconhecimento das questões de integridade – que antes de ser científica deve ser humana – permeiam as relações dentro e fora da academia.

Não há dúvida que as novas ferramentas de inteligência artificial nos colocam perante um desafio paradoxal: por um lado, necessitamos de refletir sobre a ética das novas tecnologias; por outro lado, o tempo para a deliberação ética não é o tempo acelerado do desenvolvimento de programas de inteligência artificial, machine learning e deep learning. Andamos em descompasso, desconexos e dessintonizados. Todos estes fenómenos e processos desembocam em algo que parece estar em falta ou em desuso: bom senso, um dos pilares essenciais da conduta responsável em investigação, que nos motiva a pensar sobre os processos e não apenas sobre os resultados.

O processo de publicação na academia do século XXI requer igualmente tempo de reflexão ética sobre os procedimentos instituídos, ancorados em métricas que regulam o desenvolvimento da carreira (precária) dos investigadores, que ficam reféns da aceitação dos seus artigos por revistas científicas com fator de impacto elevado. É esta aceitação que determina, dentro da academia, as progressões, os despedimentos, as novas oportunidades, os financiamentos, ou seja, o sistema científico construiu uma armadura que desvirtua o valor do conhecimento, ficando reduzido unicamente ao que é publicado e destacando-se a quantidade como virtude, nem sempre acompanhada pela qualidade.

Acontece que nestes processos complexos de revisão e publicação (ou de sobrevivência) sobressaem paradoxos que, raras vezes, são considerados ou discutidos:

  1. O conceito de conhecimento científico: vivemos um dos maiores paradoxos da ciência contemporânea, pelo qual passamos do conhecimento valorizado pelo rigor científico, para o conhecimento que só o é quando publicado. O velho lamento de Snow [1] sobre a divisão entre ciências exatas (duras) e ciências sociais e humanas (moles), parece continuar a fazer sentido no contexto atual de valorização de dados e factos em detrimento do contexto, dos valores e da essência do humano. É neste contexto que Davus e Morris [2] propuseram o manifesto biocultural, argumentando: While we don’t deny the existence of facts, as data confirmed, for example, through a process of randomized double-blind experiments, we do question the notion that some facts are harder than others. We do question the social and discursive strategies and rules that produce the conditions for facts to arise. And we do question the notion that the humanities is a realm cut off from facts and restricted to the study of values and feelings; Biology, as a science, cannot exist outside culture; culture, as a practice, cannot exist outside biology. (p. 413; p. 418).
  2. O rigor da ciência e a subjetividade dos revisores: é inaceitável a rejeição de artigos, não por falta de validade científica, mas sim por desafiarem postulados que se querem manter sem questionamento ou por se situarem nas margens da corrente do pensamento dominante;
  3. O elitismo da publicação: o enviesamento do conhecimento científico publicado resulta do enviesamento no processo de aceitação dos artigos para publicação, frequentemente determinado pela citação dos próprios revisores, pela auto-citação dos autores, dando destaque à revista que publicou outros artigos dos mesmos autores; ou seja, entramos, portanto, num circuito centrípeto, que põe em causa a qualidade do conhecimento divulgado;
  4. Perecer em vez de rever: o processo de revisão é talvez o maior espelho do estado da academia. Desmotivação e desinteresse resultam numa dificuldade enorme em conseguir revisores comprometidos com o processo de revisão. O efeito inverso é a existência de revisores sem competências científicas e, em alguns casos, humanas, que reveem artigos para aumentar o número de revisões no seu perfil da Web of Science ou, em outros casos, para obterem vouchers para publicação gratuita;
  5. O template e o processo de montagem: artigos que não se adequam ao “formulário ideal” são, de forma recorrente, considerados como “não artigos”, pois não correspondem aos cânones impostos por alguns como certos. Esta realidade limita a originalidade de pensamento e fruição intelectual, atribuindo aos textos impessoalidade e aproximando-os de uma escrita robotizada, que parece ameaçar o futuro da publicação (ou talvez seja uma possibilidade de regeneração);
  6. O inglês como língua-franca: a publicação em revistas com fator de impacto exige o domínio da língua inglesa como língua “universal”. Tal imposição deixa de fora outras geografias, outras formas de pensamento, outras possibilidades de construção de ideias e de racionalidades que só são possíveis quando escritas na língua nativa. A falta de conhecimentos da língua inglesa pode significar a exclusão e a marginalização dos circuitos de publicação mais “desejados”.

A reforma do sistema de avaliação dos investigadores, promovida pela Comissão Europeia através da constituição de uma aliança para o avanço da avaliação da Investigação (Coalition for the advancement of research assessment
(CoARa) [3] pode fazer a diferença se for, de facto, implementada pelas instituições académicas. No texto do acordo final datado de junho de 2022, pode ler-se que os critérios de avaliação da investigação devem ser centrados na qualidade, valorizando a originalidade das ideias, o profissionalismo e os resultados que ultrapassam o estado da arte. A qualidade implica que a investigação seja efetuada através de processos e metodologias de investigação transparentes e através de uma gestão da investigação que permita a reutilização sistemática de resultados anteriores. A abertura da investigação, bem como resultados verificáveis e reprodutíveis, quando aplicável, contribuem fortemente para a qualidade. A partilha precoce de conhecimentos e dados, bem como colaboração aberta, incluindo o envolvimento da sociedade, quando adequado, poderão contribuir para desconstruir a excessiva valorização da quantidade de publicações em detrimento da qualidade do conhecimento publicado e disseminado através de outros canais fora dos circuitos de publicação tradicionais. A avaliação deverá, portanto, basear-se na apreciação qualitativa, para a qual a análise pelos pares é fundamental, apoiada por indicadores quantitativos utilizados de forma responsável, se for caso disso.

Consideramos que esta proposta de reforma do sistema de avaliação poderá alterar o paradigma inscrito no título do nosso artigo, nomeadamente, o pressuposto de que o conhecimento só o é se for publicado: “O aumento excessivo de produção leva ao enfarte da alma” (p. 52) [4].

Notas:

Artigo desenvolvido no âmbito do projeto “Compor mundos: humanidades, bem-estar e saúde no século XXI”, apoiado pela Fundação Ensino e Cultura Fernando Pessoa (FFP).

[1] Snow, C. P. (1959). The Two Cultures and the Scientific Revolution. Cambridge University Press.

[2] Davis, L.J., & Morris, D.B. (2007). Biocultures Manifesto. New Literary History 38(3), 411-418.

[3] CoARa (2022) Agreement on Reforming Research Assessment. Disponível em: https://coara.eu/app/uploads/2022/09/2022_07_19_rra_agreement_final.pdf

[4] Byung-Chul, H. (2015) A Sociedade do Cansaço. Vozes.

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