Desafios à regulação do trabalho por plataformas digitais em Portugal

Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública

Título do artigo: Desafios à regulação do trabalho por plataformas digitais em Portugal

Autor: Tiago Vieira

Filiação institucional: Instituto Universitário Europeu

E-mail: Tiago.VIEIRA@eui.eu

Palavras-chave: Plataformas digitais, gestão algorítmica, Trabalho.

Saídas do terramoto económico, social e político que a crise financeira internacional de 2008-2011 representou, plataformas digitais como a Uber, Amazon Mechanical Turk, Glovo, ou Task Rabbit (para nomear apenas algumas), são hoje parte da vida quotidiana de milhões de trabalhadores por todo o mundo. Ao longo desta década e meia, grosso modo, as plataformas digitais viveram à sombra de um estado de exceção que lhes permitiu impunemente contornar as leis [1] ou, em alguns casos específicos, ver leis serem adequadas de forma a corresponder aos seus interesses, para isso bastando ligeiros ajustes na sua operação [2].

Quer num, quer noutro cenário, grosso modo, as plataformas digitais assentaram a sua atividade em duas características fundamentais: (i) o recurso a trabalho independente, isto é, não assalariado; (ii) a utilização de tecnologias de gestão algorítmica dos seus trabalhadores. O problema, cedo identificado [3], é que não apenas os trabalhadores das plataformas digitais são erroneamente classificados como sendo independentes – numa espécie de sucedâneo dos bem portugueses falsos “recibos verdes” – como a utilização de algoritmos para gestão de trabalhadores está, em larga medida, por regulamentar.

No entanto, o vento parece estar a mudar. Ecoando os protestos de trabalhadores e as preocupações levantadas por trabalhos de natureza jornalística e académica, legisladores de várias latitudes estão agora a procurar trazer os trabalhadores das plataformas digitais para a esfera do emprego standard, isto é, para situações onde empresa e trabalhador estejam ligados por um contrato de trabalho e haja pelo menos um mínimo de acesso à informação sobre o conteúdo funcional dos algoritmos em funcionamento [4]. As alterações ao Código do Trabalho em Portugal que entraram em vigor no dia 1 de maio de 2023 [5], não sendo exclusivamente dedicadas a este fim, contêm em si importantes aspetos neste âmbito em particular.

Relativamente à forma que as disposições que visam as plataformas digitais assumem, há entre as gentes da área do Direito vários comentários pessimistas, sugerindo que as plataformas contornarão com relativa facilidade a legislação [6]. Sem prejuízo da necessidade de que se dê atenção a estes importantes aspetos – afinal, de que serve uma lei se os seus alvos podem simplesmente contorná-la? – o meu comentário é de natureza estritamente sociológica. A partir da experiência que tive durante o meu trabalho de campo em Espanha, onde em 2021 se realizou uma alteração não muito diferente, identifico 3 desafios para o futuro da regulação do trabalho por plataformas digitais em Portugal, a saber:

(i) Não cumprimento. A existência de uma lei não significa que ela seja cumprida. Por mais que isso soe estranho para o comum cidadão individual, o mundo empresarial está cheio de exemplos de casos onde compensa mais não cumprir lei e pagar a multa, do que cumprir. No caso espanhol, a plataforma de distribuição de comida ao domicílio Glovo está há dois anos em incumprimento da lei e nem a acumulação de multas em mais de cem milhões de euros (nunca pagas e sempre colocadas na justiça) a faz afastar-se um milímetro da sua trajetória de afronta aos poderes legais. Mas um caso destes será sempre a ponta do icebergue. Detetar situações de incumprimento em trabalhadores que são visíveis na rua – e, por isso, podem ser parados e interrogados – é incrivelmente menos difícil do que atuar sobre os muitos casos em que os trabalhadores operam em casa dos clientes (a fazer pequenos arranjos e prestando cuidados de qualquer natureza) ou nas suas próprias casas frente a um computador.

(ii) Outsourcing e temporalidade. Ainda que a nova disposição legal seja cumprida, nada impede as plataformas digitais de – tal como em Espanha – recorrerem a empresas prestadoras de serviços para lidar com a contratação de trabalhadores. Além disso, neste caso ao contrário de Espanha, a lei portuguesa oferece aos empregadores possibilidades de trabalho temporário de tal forma amplas, que será possível às plataformas digitais (direta ou indiretamente) contratar trabalhadores por escassas horas para a realização de uma qualquer (micro-)tarefa, assim esvaziando o que de segurança e estabilidade se presume quando se pensa numa relação de emprego. Posto de outra forma, da insegurança do falso trabalho independente os trabalhadores por plataformas podem passar para a insegurança do contrato temporário e fugaz que já marca o quotidiano de tantos trabalhadores no nosso país.

(iii) Controlo exacerbado. Mesmo que não se verifique nenhum dos dois cenários acima, a consagração do princípio da transparência algorítmica na nossa legislação dificilmente passará de uma generosa manifestação de intenção. Tal como em Espanha, nem sindicatos, nem a Autoridade para as Condições de Trabalho estão preparados para intervir neste domínio e, mesmo que o façam, esbarrarão sempre nos ditames das plataformas que continuarão a utilizar – talvez de forma mais intensa ainda – técnicas de gestão algorítmica para controlar ritmos de trabalho e todo o tipo de comportamentos que considerem de alguma maneira “desviantes” – desde ir à casa-de-banho sem autorização até entabular conversas de natureza sindical durante o tempo de trabalho.

Lidar com as realidades emergentes neste admirável novo mundo novo do Trabalho é, com certeza, uma árdua tarefa. Nesse sentido, os esforços realizados merecem ser aplaudidos simplesmente porque existem. Não obstante, os limites da sua ação – a confirmar nos próximos anos – colocam importantes questões a que os diferentes atores sociais devem permanecer atentos. De resto, é preciso que qualquer tentativa de regulação do setor das plataformas digitais tenha de ser articulada com a elevação dos padrões de qualidade do Emprego em Portugal, cientes de que nenhum setor do mundo do Trabalho é uma ilha isolada. A não ser assim, poderemos encontrar-nos numa situação paradoxal, em que os trabalhadores destas empresas – em teoria, os principais beneficiados com as alterações que agora entram vigor – sejam os primeiros a exigir a desregulação do mercado laboral. E sim, já aconteceu em Espanha [7].

Notas:

[1] Doorn, N. V. (2020). At what price? Labour politics and calculative power struggles in on-demand food delivery. Work Organisation, Labour & Globalisation, 14.

[2] Vallas, S. & Schor J. B. (2020). What do platforms do? Understanding the gig economy. Annual Review of Sociology, 46, 273-294.

[3] De Stefano, V. (2015). The rise of the just-in-time workforce: On-demand work, crowdwork, and labor protection in the gig-economy. Comparative Labor Law and Policy Journal, 37, 471.

[4] Adăscăliței, D. (2022). Regulating platform work in Europe: a work in progress. Social Europe. Disponível em https://www.socialeurope.eu/regulating-platform-work-in-europe-a-work-in-progress.

[5] Lei nº 13/2023, de 03 de abril. Disponível em https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=3628&tabela=leis&so_miolo=

[6] Mateus, C. (2023) Plataformas digitais não explicam se e como vão cumprir a lei laboral. Expresso. Disponível em https://expresso.pt/economia/trabalho/2023-03-11-Plataformas-digitais-nao-explicam-se-e-como-vao-cumprir-a-lei-laboral-8790a3fb.

[7] Vieira, T. (2023). The Unbearable Precarity of Pursuing Freedom: A Critical Overview of the Spanish sí soy autónomo Movement. Sociological Research Online, 28(1), 244-260.

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