Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: O educador de pares: obstáculos e desafios à sua especialização
Autora: Maria João Oliveira1, Ximene Rego2
Filiação institucional: 1 Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP); 2 Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov)
E-mail: mjoliveira@letras.up.pt
Palavras-chave: educador de pares, especialização, desigualdades.
O educador de pares é uma figura comum no seio das equipas que trabalham em projetos e serviços de educação para a saúde a nível nacional e internacional, especialmente reconhecidos pela pertença simultânea à equipa técnica e à população-alvo, embora continue a não existir uma definição única e consensual sobre o seu papel. Esta variabilidade – que pode ser percebida como uma das vantagens destes intervenientes – parece contribuir para a fragilidade de quem trabalha como profissional nas equipas técnicas, nomeadamente no que diz respeito ao seu reconhecimento como ‘especialista’ entre outros especialistas.
As revisões sistemáticas da literatura existentes apontam que a educação por pares tem mudanças positivas no conhecimento e atitudes dos participantes (outputs), embora mais pesquisas sejam necessárias para determinar a sua relação custo-benefício e impacto nas mudanças comportamentais (outcomes) [1][2][3][4][5]. Para além disso, sabemos que, frequentemente, (i) a educação pelos pares exige um conjunto de competências e a aquisição de conhecimentos técnicos, transmitidos através de um processo de formação devidamente sujeito a avaliação; (ii) não é invulgar encontrar entidades promotoras que enquadram os educadores de por pares através de contratos de trabalho formais; (iii) o trabalho de educação por pares é mais barato em comparação com outras profissões; e (iv) a educação por pares é bem-vinda e positivamente avaliada pelos financiadores.
Por que razão continuam, então, os pares a enfrentar obstáculos à sua especialização, nomeadamente ao nível do reconhecimento da profissão, mas também ao nível da regulamentação, cujo acesso e exercício dependem do cumprimento de requisitos profissionais?
Para aprofundar a compreensão dos desafios e obstáculos à especialização dos pares, a título exploratório, realizamos análise documental de 15 projetos de educação para a saúde numa ONGD portuguesa [6] que trabalha com educadores de pares desde 2004, quer enquanto técnicos contratados, quer como voluntários. Vale a pena salientar que se trata de projetos que trabalham com populações de difícil acesso, como utilizadores de drogas, profissionais do sexo e reclusos, mas também jovens em situação de vulnerabilidade. Entre candidaturas a financiamento, relatórios, manuais e materiais diversos, identificamos 56 documentos onde se faz referência explícita à abordagem de educação de pares na conceção e implementação dos projetos.
Como resultado, observamos que aos educadores de pares são particularmente reconhecidas competências pessoais e sociais, de comunicação, autocontrolo, empatia, autoestima, sentido de responsabilidade, capacidade de ouvir e trabalhar em equipa, e um conjunto de conhecimentos básicos sobre questões relacionadas com a saúde. As tarefas que desempenham incluem registo de atividades, avaliação de necessidades, participação nos processos de tomada de decisão, mas centram-se sobretudo nas necessidades da população-alvo (distribuição de material, fornecimento de informação, mediação de problemas, facilitação de soluções e apoio emocional). São referidos como “pontes” entre a equipa, os serviços/entidades e a população-alvo, apoiando a equipa técnica em várias tarefas. O valor adicional dos pares é particularmente enfatizado no acesso às populações (sobretudo, de difícil acesso) ao nível do desenvolvimento de relações de confiança – mitigando, assim, os mecanismos de defesa; na transmissão de informações claras/compreensíveis (pela proximidade cultural); na avaliação de necessidades através da recolha de dados com recurso a metodologias participativas; no desenvolvimento de intervenções personalizadas; na geração de mudança junto dos pares; e no potencial de uma estratégia que se estende para além do horário de trabalho através das redes informais. Por fim, o empoderamento dos próprios pares também é bastante destacado como uma das grandes vantagens desta estratégia.
O estudo destes casos revela, ainda, que a organização e as equipas tendem a definir o papel dos pares de acordo com a população-alvo e nunca em relação à equipa técnica – mesmo quando os pares são profissionais com contrato de trabalho. A única referência à interação funcional entre pares e restante equipa técnica estabelece-se ao nível da monitorização e/ou supervisão, que se exerce, sempre, pelos colegas e/ou coordenadores sobre os pares. Por outro lado, as equipas assumem tacitamente (e, por vezes, praticam) um modus operandi onde as tarefas do educador de pares são desempenhadas também pelos outros técnicos. Assim, por exemplo, ao contrário do que acontece com enfermeiros, psicólogos ou assistentes sociais, a função do educador de pares não é insubstituível, mesmo quando reconhecida como mais eficaz e/ou eficiente para alcançar as populações em lugares e momentos onde os restantes técnicos não chegam.
Assim, aliado ao facto de não existir uma definição consensualizada sobre o papel dos pares nem pesquisas consistentes sobre o seu custo-benefício ou impacto (nomeadamente, comparando com outros profissionais), a dinâmica estabelecida dentro das equipas – que, de resto, se mantêm em funcionamento com ou sem educadores de pares – contribui, na nossa perspetiva, para a dificuldade do seu reconhecimento profissional, especializado em projetos e serviços de educação para a saúde – ainda que isso aconteça de forma não intencional ou inconsciente. Como resultado, o educador de pares permanece, em maior ou menor grau, como trabalhador indiferenciado, com baixos salários quando comparado com outros profissionais, o que aprofunda desigualdades e estigmas, tão mais relevantes quando os pares pertencem a populações vulneráveis.
Notas:
[1] Maley, M., & Eckenrode, J. (2017). Systematic Translational Review: Peer Education for Adolescent Reproductive and Sexual Health. Bronfenbrenner Center for Translational Research.
[2] Bagnall, A.M., South, J., Hulme, C., Woodall, J., Vinall-Collier, K., Raine, G., Kinsella, K., Dixey, R., Harris, L., & Wright, N.M., (2015). A systematic review of the effectiveness and cost-effectiveness of peer education and peer support in prisons. BMC Public Health, 25(15), 290.
[3] Tolli, M. V. (2012). Effectiveness of peer education interventions for HIV prevention, adolescent pregnancy prevention and sexual health promotion for young people: a systematic review of European studies. Health Education Research, 27(5), 904–913.
[4] Medley, A., Kennedy, C., O’Reilly, K., & Sweat, M. (2009). Effectiveness of peer education interventions for HIV prevention in developing countries: a systematic review and meta-analysis. AIDS Education and Prevention, 21(3),181–206.
[5] Harden, A., Oakley, A., & Sandy, O. (2001). Peer-delivered health promotion for young people: A systematic review of different study designs. Health Educational Journal, 60(4), 339-353.
[6] Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES), organização onde as autoras eram colaboradoras e, por isso, se regista uma ampla familiaridade com o caso. Este trabalho foi apresentado pelas autoras em dois congressos internacionais.
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