A gestão de infraestruturas de ambiente: inovação social e inovação tecnológica. Questões preliminares com base na reutilização e economia circular

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: A gestão de infraestruturas de ambiente: inovação social e inovação tecnológica. Questões preliminares com base na reutilização e economia circular

Autor: João Lutas Craveiro

Filiação institucional: Laboratório Nacional de Engenharia Civil

E-mail: jcraveiro@lnec.pt

Palavras-chave: Inovação, Aceitação Social, Economia Circular.

O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) liderou um projeto sobre a remoção de fármacos de Estações de Águas Residuais (ETAR), em Portugal. O projeto, cofinanciado pela União Europeia (sob o Programa LIFE, com a Ref. LIFE14 ENV/PT/000739), intitulado Improving current barriers for controlling pharmaceutical compounds in urban wastewater treatment plants, executado entre 2016 e 2019, incidiu sobre as formas de gestão de ETAR portuguesas desenvolvendo uma análise comparativa entre métodos convencionais de tratamento de águas residuais e novos métodos com carvão ativado em pó [1]. O presente artigo baseia-se apenas nas componentes sociais do projeto, no envolvimento de Stakeholders e construção de cenários societais, explorando aspectos relacionados com a intervenção do autor nos domínios da aceitação social de inovações tecnológicas e perspetivas sobre mudanças comportamentais. Este artigo constitui, assim, um exercício de reflexão sociológica que apenas compromete o seu autor. Reflete-se acerca da gestão de infraestruturas de ambiente e o modo como o tipo de solução tecnológica espelha crenças sobre a capacidade de mudança social adaptativa, apostando-se numa generalizada mudança de comportamentos (num primeiro caso, estudado anteriormente) ou desvalorizando-se essa mesma possibilidade (no segundo caso, do projeto referido). No primeiro caso, encontramos historicamente o curso de inovações tecnológicas que se destinam à reciclagem (e posterior reutilização) de resíduos domésticos urbanos.

Com efeito, pode-se convocar as perspetivas sociotécnicas no sentido de perceber em que medida a inovação tecnológica e a inovação social se apresentam concomitantes, ou sob percursos aparentemente independentes. Deve a inovação tecnológica, devido à pressão da emergência ambiental, antecipar-se à inovação social? A tecnologia responderia, assim, por antecipação à indeterminação de cenários societais perante a incerteza sobre uma mudança generalizada de comportamentos sociais adaptativos (mudança não esperada, embora pretendida!). Esta mudança comportamental apenas parece realizar-se por via política e coerciva, sob novas exigências legais [2]. No entanto, no caso do tratamento de resíduos domésticos urbanos (primeiro caso e estudo anterior), com os objetivos da reciclagem e da reutilização, a tecnologia interiorizou a possibilidade da própria mudança comportamental, em larga escala, pelas populações [3]. Isto é, as soluções tecnológicas remeteram-se para jusante, acreditando-se que seriam as pessoas, a partir de casa, a separar voluntariamente os resíduos por tipos diferenciados, a transportá-los para a rua e em depositá-los (de forma evidentemente separada) em recipientes para o efeito colocados na sua área de residência. A inovação dispensou, aqui, soluções automatizadas (ou mão de obra massiva) para a separação de resíduos: neste caso, e a montante das infraestruturas de reciclagem, a população colabora com a tecnologia, ajustando comportamentos por antecipação, que auxiliam as soluções tecnológicas que atuam a posteriori.

No segundo caso, a remoção de fármacos de ETAR explorou soluções tecnológicas que cumpririam, com eficácia, o seu papel independentemente de envolverem, necessariamente e a montante, uma mudança generalizada de comportamentos. Os cenários societais, co-construídos com os Stakeholders, no projeto LIFE referido, valorizaram mais o investimento na inovação tecnológica do que na inovação social ou na mudança de comportamentos [4]. De facto, a evolução demográfica ensaiada corresponde a um envelhecimento da população portuguesa e, consequentemente (segundo se acredita) a um maior consumo de fármacos (em que a existência de mais pessoas idosas potencia a prevalência de [mais] doenças crónicas, num sistema nacional de saúde que tem, aliás, o seu foco na doença, e não na promoção de comportamentos saudáveis para um envelhecimento socialmente ativo e integrado). Naturalmente, a aposta tecnológica de uma intervenção em fim de linha, a jusante –  alienada, porque independente, dos comportamentos humanos – incidiu nos aspetos físico-químicos de uma remoção, ou neutralização, das componentes farmacológicas das águas residuais.

A inovação tecnológica deverá ainda, além da demonstração positiva de resultados, atingir a sua plena adoção local/municipal mediante potenciais exigências legais mais apertadas, resultantes da inscrição discriminativa de novas componentes farmacológicas a extrair das ETAR. Com a atual situação pandémica acentua-se, aliás, a possibilidade tecnológica de intervenções mais abrangentes e incisivas, como a vigilância legal de amostras, sobre a composição das águas residuais urbanas. Contudo, neste exemplo, a tecnologia parece antecipar-se a qualquer mudança comportamental significativa, assumindo-se como um recurso meramente reparador ou regenerador do tipo de resíduos proveniente das comunidades humanas, dispensando, por isso mesmo, a inovação social por não depender desta.

Estes dois exemplos indiciam que a relação entre inovação social e inovação tecnológica não se processa de forma automática, e estas podem ser experimentadas de forma mais ou menos independente, mesmo em exemplos, à partida, sujeitos a grande consenso social e político sobre a urgência da economia circular e do reaproveitamento de recursos. No entanto, não é credível pressupor que uma inovação tecnológica, na senda de uma modernização ecológica (que, afinal, é o que a economia circular significa), mesmo por via meramente instrumental, não suscite mudanças de enquadramento legal (ou que não resulte delas) e não suscite, no seu itinerário de exigências politicamente determinadas, uma mudança progressivamente massiva de comportamentos humanos [5].

Mesmo assumindo-se como absolutamente definitivas as perspetivas opostas para aqui carreadas, dos dois exemplos resumidos, prevalece uma dimensão de aceitação social em ambos os exemplos. Esta aceitação social prende-se com a reutilização de água residual tratada e com a reutilização de materiais ou objetos resultantes da reciclagem de resíduos urbanos. Quer num caso quer no outro, afinal, as consequências das aplicações tecnológicas reencontram-se com a inovação social, quando a água residual tratada suporta atividades de rega urbana ou agrícola, por exemplo, ou para novos usos que não o consumo humano, ou quando materiais e objetos reciclados reentram nos circuitos mercantis dos usos e fins quotidianos, onde readquirem a sua utilidade social. Nestas reutilizações evidencia-se com maior grau crítico as questões da aceitação social, nas suas dimensões de ordem política, comunitária e económica [6]. Nos exemplos citados, a hipótese da interdependência entre a inovação tecnológica e a inovação social depende, em última instância, da aceitação social das reutilizações resultantes do emprego tecnológico (nos casos citados), sendo que no exemplo dos resíduos a inovação social adquire uma expressão dupla (a montante e a jusante da infraestrutura tecnológica). Saliente-se, por fim, que qualquer inovação tecnológica acarreta sempre consequências sociais e, em rigor, a própria evolução das tecnologias acompanha as exigências sociais e políticas, requerendo, numa designada economia circular, hábitos de (re)uso que necessariamente refletem também resultados económicos. Em jeito de remate, não há inovação tecnológica sem inovação social. Em última circunstância, tudo depende da aceitação social – que sempre se pode mensurar na adoção de novos comportamentos humanos.

 

Notas:

[1] Link do projeto: https://life-impetus.eu/home/

[2] Rosted, J., Kjeldsen, C., Bisgaard, T., & Napier, G. (2009). New Nature of Innovation. (ref. DSTI/IND(2009)2). Copenhagen: OECD.

[3] Craveiro, J. L.; Machado, P. F., Informação, Divulgação e Sensibilização Públicas, in Instrumentos de Apoio a uma Política de Desenvolvimento Sustentável em Saneamento Básico, Volume 16, Lisboa, LNEC/MARN/DGA. Veja-se também reflexões oriundas da Teoria da Modernização Ecológica, da autoria de Joseph Huber, ou mais especificamente os modelos de inovação jurídica e a integração das questões ambientais no sistema político, explorados por G. Spaargaren e A.P.J. Mol e particularmente por M. Jänicke.

[4] Craveiro, J. L. (2019). Report on Social Impact Assessment including Future Scenarios valuated by Stakeholders. Action C.5-2019. Final Report. Improving current barriers for controlling pharmaceutical compounds in urban wastewater treatment plants/LIFE ENV/PT/000739, Lisboa, LNEC.

[5] Gibbs, D. (2006). Prospects for an Environmental Economic Geography: Linking Ecological Modernization and Regulationist Approaches. Economic Geography 82(2): 193–215.

[6] Wüstenhagen, M.W. & Burer, M.J. (2007). Social acceptance of renewable energy innovation: An introduction to the concept. Energy Policy, Vol. 35, Issue 5: 2683-2691.

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