A saúde mental dos trabalhadores

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: A saúde mental dos trabalhadores

Autor: João Areosa

Filiação institucional: Escola Superior de Ciências Empresariais do Instituto Politécnico de Setúbal (ESCE-IPS). Investigador do Centro Interdisciplinar em Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.NOVA)

E-mail: joao.s.areosa@gmail.com

Palavras-chave: Trabalho, Saúde Mental.

Tendo por base o desafio lançado para olhar para esta última década e refletir sobre a relação entre saúde e trabalho, convém registar, desde logo, que essa ligação é inequívoca. As atividades profissionais são um dos fatores que podem contribuir positiva ou negativamente para o nível de saúde dos trabalhadores, em particular devido às alterações nas formas modernas de trabalhar e de organização do trabalho ou mesmo fruto do contexto atual de pandemia.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) define a saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social. Contudo, essa definição não é totalmente consensual. A título de exemplo, Christophe Dejours [1] critica essa conceção de saúde, essencialmente, por dois motivos: por um lado, se tentarmos aprofundar o que é o referido bem-estar, verificamos que é algo ambíguo e variável de pessoa para pessoa; por outro lado, esse completo e perfeito estado de bem-estar, não existe. No seu entender, esta noção de bem-estar associada à saúde é muito vaga. A saúde não é um estado permanente, algo que depois de atingido se mantenha estável. Ela deve ser entendida como um objetivo a ser alcançado, como um fim que se deseja. Por isso, a saúde passa por “ter meios de traçar um caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social” [1].

Para este autor, existem três elementos que podem ajudar a construir um “novo conceito” de saúde: a fisiologia, a psicossomática e a psicopatologia do trabalho. O primeiro está relacionado com o próprio funcionamento do organismo, ou seja, os preceitos que asseguram o seu equilíbrio e sobrevivência. O segundo elemento traduz-se mediante a relação entre o que se passa na mente humana e o funcionamento do respetivo corpo. Há interações permanentes entre corpo e mente. Não pode haver mente sem corpo. Por último, o terceiro elemento defende que o trabalho pode ser um aspeto fundamental para a saúde. É verdade que o foco da psicopatologia do trabalho está, em grande medida, direcionado para os aspetos negativos do trabalho. Contudo, é aceite que quando a organização do trabalho não colide com as aspirações, ideias, crenças e desejos dos trabalhadores, será justamente um meio de promover a saúde através do trabalho.

Há várias décadas que a psicopatologia do trabalho demonstrou que alguns tipos de trabalho seriam mais nocivos do que outros para a saúde mental dos trabalhadores. Um exemplo clássico da década de 1950 é o estudo de Le Guillant e Bégoin [2]. A designada “neurose das telefonistas” permite compreender a enorme diversidade e variabilidade humana. Em determinados trabalhadores detetaram-se cefaleias, zumbidos, pensamentos obsessivos relacionados ao trabalho, alterações de humor ou de sono, reações emocionais como crises de choro ou ataques de raiva, condicionando fortemente a sua permanência naquele tipo de trabalho; enquanto outros trabalhadores, desempenhando as mesmas funções e estando no mesmo local de trabalho, os efeitos eram residuais ou mesmo inexistentes. Isto significa que o mesmo trabalho não afeta de igual forma todos os trabalhadores. Há sempre um certo enigma a priori sobre qual será o resultado da relação trabalho/saúde mental em cada trabalhador.

Por vezes, é feita a divisão entre saúde mental e saúde física, mas essa separação é normalmente fictícia. Diversos estudos têm demonstrado uma profunda correlação entre perturbações mentais e físicas [3]. Não pode haver saúde, em sentido amplo do termo (mesmo considerando a sua ambiguidade), sem saúde mental. Colocando precisamente o nosso foco na saúde mental, a OMS define-a como “um estado de bem-estar no qual o individuo realiza as suas capacidades próprias, pode manejar as dificuldades normais da vida, pode trabalhar de forma produtiva e frutuosa, e é capaz de prestar uma contribuição para a sua comunidade” [3].

Ao longo da história a doença mental foi olhada, recorrentemente, como um estigma [4]. De certo modo, na atualidade, esse estigma ainda permanece. Os indivíduos que sofrem de doenças mentais são particularmente vulneráveis a serem vítimas de discriminação, sofrimento, violência (física ou simbólica), exclusão social e pobreza. Talvez por isso, a saúde mental sempre tenha assumido um destaque periférico dentro do campo da saúde. Há, contudo, ligeiros indícios de que a situação possa estar a inverter-se e as sociedades estejam a olhar para esta questão com maior sensibilidade. Em Portugal, estão a ser dados alguns passos para compreender os múltiplos impactos do trabalho na saúde mental dos trabalhadores. Sabemos hoje que algumas técnicas de gestão empresariais tendem a ser bastante nocivas para a saúde mental, nomeadamente a gestão pelo stress, a intensificação do trabalho, a precarização das relações laborais, a pressão para atingir metas e resultados difíceis de alcançar ou as múltiplas formas de assédio [5], isto só para citar alguns exemplos. A utilização destas técnicas tem vindo a degradar a saúde mental dos trabalhadores [6]. A forma como o trabalho está organizado (organização do trabalho) é central para este debate. De certo modo, pode-se dividir a organização do trabalho a partir de dois enquadramentos distintos: A psicodinâmica do trabalho (amplamente debatida por Dejours) e a sociodinâmica do trabalho. Esta última, está direcionada para observar os modelos de gestão, as práticas gestionárias e as políticas empresariais, de modo a avaliar o seu potencial de ameaça à saúde mental dos trabalhadores. Pretende também investigar e intervir na organização do trabalho, de modo a encontrar formas menos agressivas para os trabalhadores, a partir da tentativa de destapar o véu sobre a dimensão invisível das relações de poder nas atividades laborais [7].

Na atualidade, é relativamente bem aceite que a saúde mental e as perturbações mentais decorrem da interação complexa de fatores biológicos e ambientais [3]. A União Europeia, em 2015, estimou que os custos associados às doenças mentais correspondessem a cerca de 4% do PIB dos estados membros [8]. O Plano de Ação para a Saúde Mental 2013-2020 recomenda aos Estados Membros que o desenvolvimento de políticas e estratégias que promovam a sensibilização pública sobre saúde mental [9]. Contudo, este plano ainda tem um longo caminho a percorrer até a sua concretização se tornar efetiva. Isto significa que um dos grandes desafios do século XXI será gerar mecanismos que permitam compatibilizar adequadamente a relação trabalho/saúde mental.

Notas

[1] Dejours, C. (1986). Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 54(14), pp. 7-11.

[2] Le Guillant, L. & Begoin, J. (1957). Psychopathologie du travail, à propos de quelques observations chez les mécanographes. Bulletin de psychologie, 10, pp. 500-508.

[3] Almeida, J. (2018). A saúde mental dos portugueses. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

[4] Goffman, E. (1982). Estigma. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

[5] Areosa, J. (2019). O mundo do trabalho em (re)análise: um olhar a partir da psicodinâmica do trabalho, Laboreal, 15(2), pp. 1-24.

[6] Dejours, C. (2013). A sublimação, entre o sofrimento e prazer no trabalho. Revista Portuguesa de Psicanálise, 33(2), pp. 9-28.

[7] Alevato, H. (2020). Sociodinâmica do trabalho e saúde mental. In: Schmidt, M. L. G. (Org.). Dicionário temático de saúde/doença mental no trabalho: principais conceitos e terminologias. São Paulo: FiloCzar, pp. 406-409.

[8] OECD/UE (2018). Health at a Glance: Europe 2018: State of Health in the EU Cycle. Paris: OECD Publishing/Bruxelas: União Europeia.

[9] OMS – Organização Mundial da Saúde (2013). Mental health action plan 2013-2020. Genebra: OMS.

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