O teatro na arte de transformar estados de consciência

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: O teatro na arte de transformar estados de consciência

Autor: José Eduardo Silva

Filiação institucional: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

E-mail: jeduardosilva@fpce.up.pt; http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=4262356114843078

Palavras-chave: performative arts, human development, psychology of aesthetics.

Cada personagem que um actor interpreta implica, da sua parte, uma deslocação em direcção a um outro, a uma outra forma de pensar, de sentir e de fazer. O actor altera a sua consciência, acede à compreensão de formas diferentes de perspectivar o mundo e reconhecendo essas formas como possíveis, incorpora em si novas e inesperadas maneiras de aceder à complexidade que cada ser humano encerra.

Hoje, algures no ano quinze do século XXI e depois de milhões de anos de evolução, não deixa de ser surpreendente a ignorância generalizada sobre o porquê desta actividade milenar.

Efectivamente, porque é que algumas pessoas hão-de ter escolhido uma actividade onde constantemente se abdica da confortabilidade das perspectivas pessoais para procurar conhecer, perceber, sentir e materializar outras realidades diferentes da sua? Ou, pior ainda, como será possível que nesse exercício alguém encontre algum tipo de interesse? E o que diremos do prazer que poderá ter alguém que presencie essas “ficções”? Que aprecie fruir, como espectador, de um tal exercício? Espantosas perguntas, se tivermos em conta que há milhares de anos que se faz teatro. Uma actividade que se reparte entre actores e espectadores (os seus únicos elementos essenciais) e que assenta na generosidade de uma relação de partilha, com vista à co-criação de uma realidade comum – para citar autores como Jerzy Grotowski (1965/1971) ou Peter Brook (1968/1996).

Na ciência, os estudos que procuram explicar este fenómeno são abundantes e, ainda assim, não conseguiram senão aflorar todo o alcance do que o envolvimento empático presente nos processos teatrais espoleta. Destacamos aqui o desenvolvimento psicológico global, constatável objectivamente ao nível do funcionamento neurológico cerebral, não só para os actores como também para os espectadores (Silva, 2013).

Mas comecemos pelo início. Que tipo de mundo estaremos a pensar construir quando não procurarmos compreender as perspectivas do(s) Outro(s)? Ou quando – relembrando Robert Selman (1980) – nos revelarmos incapazes de uma tomada de perspectiva social?

A resposta é bem evidente: um mundo individualista e competitivo em que vigorará, exclusivamente, a lei do mais forte. Um mundo sem cuidado onde tudo gira à volta do triunfar ou perecer. Onde tudo é mensurável e tudo o que importa é que as contas estejam certas entre o deve e o haver. Onde nada existe para além do que se pode contabilizar. O ter (material) torna-se a medida universal de estruturação e organização do mundo: só é quem tem; e quanto mais se tem, maiores as possibilidades de continuar a ser e ter (e vice-versa).

Não sei se, nesta ausência de escolhas, alguém reconhecerá uma descrição de mundo. Se pensarmos bem no que estamos a ler, constatamos que só pode descrever um mundo não civilizado. Um mundo a que gostaríamos de chamar primitivo, onde ainda não é claro se a vida humana deve ser tida em consideração enquanto valor em si mesmo. Um mundo, onde o Outro é, sobretudo, um empecilho (quando não uma ameaça) para a minha vivência (ou será sobrevivência?).

Estamos hoje, claramente, nessa situação de contracção. Sob a desculpa de uma selecção “natural”, em que perece quem não se adapta, assistimos, da forma menos natural possível, à destruição de vários séculos de cultura e civilização, arduamente construída.

Visando a liberdade individual e colectiva, a cultura é o repositório último dos valores que construíram e constroem a civilização. A arte, que é, talvez, a sua manifestação mais sublime, é sempre uma prova de que é possível criar alternativas a tudo aquilo que parece pré-determinado. O teatro, enquanto forma de arte, trata, acima de tudo, das relações humanas, num contexto de inclusão, partilha e superação. E tudo isto é precioso para nós, seres humanos, se queremos viver num mundo que não coloque sistematicamente em causa a existência. Destruir estas conquistas civilizacionais é equivalente a uma regressão que só podemos tolerar se estivermos completamente alheados dela (e tudo parece indicar que estamos cada vez mais).

Economia significa, antes de qualquer outra coisa, cuidar. Acontece que os movimentos económicos, políticos e, sobretudo, financeiros actuais, propõem um tipo de desenvolvimento e inovação fundado na descartabilidade, no desperdício e na incúria, que começa precisamente com a destruição premeditada dos agentes activos que promovem o desenvolvimento real. Falamos da destruição de tudo o que promova a criatividade, a espontaneidade, o pensamento crítico e o desenvolvimento humano global (indissociavelmente emocional, cognitivo e comportamental). Ou seja, o único desenvolvimento que poderia, no longo prazo, conceber e sustentar um rumo económico, social e político capaz de realizar, no futuro, um mundo efectivamente melhor. Todos estes agentes do desenvolvimento têm sofrido ataques que seriam intoleráveis numa sociedade civilizada, mas infelizmente estamos cada vez mais longe daquilo a que gostaríamos de chamar civilização.

Para Bernard Stiegler (2010), um dos pensadores mais brilhantes da actualidade: “O poder político tem progressivamente vindo a demitir-se daquilo que é a sua função primordial, a saber, encorajar o desenvolvimento daquilo que conduz ao reforço da sociedade”. Infelizmente, a partir do momento em que o poder político se quis fazer substituir pelo marketing, os cidadãos individualizados ficaram cada vez mais à mercê das agressões de uma economia tóxica, insaciável e cada vez mais hegemónica, que só consegue sobreviver à custa do consumismo compulsivo. É sob a hegemonia destes princípios que a vida nos é reduzida à sua quantificação. Lenta, mas, implacavelmente, tudo se avalia, tudo se relativiza, tudo se confunde e tudo se dilui na incerteza – esgotando-nos de toda a energia criativa de que precisaríamos para viver (e não sobreviver apenas) – até que, finalmente, sejamos erradicados de tudo o que não puder ser traduzido em números.

Infelizmente, cabe-nos a nós, reclamar a Polis que, felizmente, ainda somos, para não deixar destruir aquilo que queremos que seja o nosso futuro e o futuro dos nossos filhos. Temos que fazê-lo o quanto antes, pois a alternativa é não ter alternativa e não podemos mais tolerar a intolerância.

A arte lembra-nos que somos humanos. E talvez nunca como hoje, precisemos tanto de exercitar essa memória. O futuro depende disso.

Notas

Brook, P. (1968/1996). The empty space: A book about the theatre: Deadly, holy, rough, immediate. Simon and Schuster.

Grotowski, J. (1965/1971). Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira.

Selman, R. L. (1980). The growth of interpersonal understanding. New York: Academic Press.

Silva, J. E. (2013). Entre o Teatro e a psicologia: processos e vivências da mudança psicológica em contexto teatral. Unpublished doctoral dissertation, University of Porto, Porto, Portugal.

Stiegler, B., & Industrialis, A. (2010). Manifesto 2010. Ars Industrialis.

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