Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia
Título do artigo: É fundamental pôr o brincar antes do Português e da Matemática – I
Autora: Maria José Araújo
Filiação institucional: Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto
E-mail: mjosearaujo@gmail.com
Palavras-chave: Brincar, Aprendizagem, Crianças, Expressão.
A forma como nos referimos ao brincar não é neutra, existe dentro de um sistema de representações da actividade humana e traz em si uma certa representação do mundo. “Antes das novas formas de pensar nascidas do Romantismo, a cultura ocidental designava como ‘brincar’ uma actividade que se opunha a ‘trabalhar’, caracterizada pela sua futilidade e oposição ao que é sério. Foi nesse contexto que a actividade infantil pôde ser designada com o mesmo termo, mais para salientar aspectos negativos do que positivos” [1]. Deve-se a Winnicot a restituição do pensamento segundo o qual o espaço lúdico permite às crianças uma relação aberta e positiva com a cultura. “Brincar é fazer”, há que fazer coisas, não simplesmente pensar ou desejar.
Tal como a arte não tem uma relação simples com a vida real, também o brincar é a possibilidade que a criança tem de criar mundos imaginários, nunca deixando de os compreender como tal. Brincar é um mecanismo que garante à criança, mas também aos adultos, uma certa distância em relação ao real, como salienta Gilles Brougère evocando Freud, Richter, Hoffman e Chomsky, para realçar o significado e a importância da dinâmica do brincar para a criança como actividade dotada de significado social que, ao contrário de outras, precisa de se exercer, praticar e explorar. As crianças procuram activamente informação, e brincar é talvez a melhor maneira de o fazer.
Há muito poucas coisas em que estamos de acordo quando falamos em brincar e muita ambiguidade quando nos referimos ao brincar das crianças. De uma maneira geral, os adultos acham que quando eles brincam é divertimento, lazer, descontracção mas, quando se trata das crianças, as brincadeiras têm de ter valor educativo. Mas o brincar é formal e não formal, real e irreal, cansa e descansa, dá prazer e incomoda, é sério e irrazoável; brincar é um paradoxo porque é, e não é, o que realmente aparenta ser, como refere Gregory Bateson. É a possibilidade que muitas crianças têm de dizer “não”, ou seja, de indicar através de uma acção negativa o que realmente não conseguem verbalizar. Está presente em todas as situações e é a linguagem das crianças. Todos pensamos saber o que é mas, na realidade, poucos sabem mesmo.
O acto de brincar, significa a possibilidade que as crianças têm de desenvolver habilidades motoras, perceptivas, cognitivas e sociais. A criança quando brinca comanda a situação, tem o controlo da sua brincadeira, percebe do que é e não é capaz e isso é essencial para a sua auto-estima e, assim, para a sua relação com os outros, em especial com o grupo de pares. A criança decide o que brinca e quanto tempo brinca porque, mesmo que tenha de interromper a brincadeira, pode voltar a ela quando quiser ou puder.
Devido à actual organização dos tempos escolares, as crianças são chamadas a controlar-se continuamente, a serem ajuizadas, estarem atentas e a manterem a máxima concentração, o que torna o acto de brincar ainda mais necessário. Uma grande variedade de práticas e de concepções sobre o acto de brincar pode ser convocada para explicar este conceito que, para muitos educadores, é tão difícil de compreender, como defende Sutton-Smith [2] salientando que a ambiguidade do acto de brincar é uma questão de retórica pois, de uma maneira geral, e dependendo das concepções e/ou perspectivas que se adoptam, brincar tem múltiplas formas no discurso dos adultos, que especulam sobre alguma coisa que, para as crianças, é muito simples e evidente. As estratégias mobilizadas pelas crianças para prosseguirem e prolongarem o brincar com os outros evidencia o envolvimento das crianças, enquanto actores sociais, numa dupla integração social − com os adultos e com outras gerações de crianças − não se limitando a reproduzir o mundo adulto. Elas fabricam outro mundo que vive ao mesmo tempo.
Todos nós brincamos ocasionalmente e todos sabemos o que sentimos quando brincamos, mas temos muita dificuldade em valorizar uma vida em que se brinca. Brincar aparece vulgarmente como actividade “gratuita”, ligada à distracção e irresponsabilidade das crianças. Mas a actividade, sendo aparentemente “inútil”, é absolutamente necessária para o bem-estar da criança e para o seu desenvolvimento pessoal e social. Embora “inútil” do ponto de vista imediato, brincar tem uma enorme importância para a consolidação e aprendizagem das crianças em todos os contextos. Tanto na sala de aula como no recreio, brincar é uma actividade essencial que permite o conhecimento do outro e de si. A criança constrói a sua cultura brincando, e o conjunto dessa sua experiência é adquirido pela participação nos jogos e nas brincadeiras com os colegas, olhando para os mais velhos. Para além disso, o desenvolvimento de competências das crianças na interacção com o grupo de pares é particularmente importante uma vez que elas rapidamente perdem essa oportunidade à medida que vão crescendo e se vão interessando por outras actividades [3]. As crianças crescem na igualdade e não numa relação de autoridade com intenção educativa. Compreendem as barreiras que existem entre os diferentes grupos nas suas interacções: correm uns atrás dos outros, invadem espaços, agridem-se, divertem-se e percebem os seus limites no confronto entre pares. É no brincar com os adultos e com o grupo de pares que a experiência social das crianças − a aprendizagem − atinge o seu máximo.
O conceito de aprendizagem tem sido especialmente usado para referir o que os adultos ensinam às crianças ou o que supostamente as crianças aprendem com os mais velhos e raramente é utilizado para referir o que as crianças aprendem entre elas. Mais dificilmente ainda é usado para mencionar o que as crianças ensinam aos adultos, e estamos ainda longe de admitir que aprendemos imenso com elas. Temos uma ideia muito estreita do conceito de aprendizagem, que não ajuda a entender que as pessoas (adultos ou crianças) aprendem sempre juntas.
Brincar é a actividade que as crianças melhor conhecem, de que mais gostam e que está presente desde que se levantam até que se deitam, em todas as situações, mesmo que muitos adultos o desconheçam e ignorem. Como refere Sutton-Smith [4], todos nós brincamos e todos sabemos como é. Mas quando tentamos teorizar, ou falar no acto de brincar, entramos normalmente num discurso muito obtuso, por vezes quase “imbecil”. Entramos em contradição quase sempre que fazemos comparações com o que consideramos actividades sérias. Substituímos a acção de brincar pela acção de estudar, não entendendo que brincar é também estudar. É uma experiência lúdica, um processo cultural rico em si mesmo, que influencia outros processos culturais mais amplos, como é o caso das aprendizagens escolares. As culturas da infância, enquanto conjunto de conhecimentos e comportamentos próprios de uma geração, são indispensáveis não só para a construção da identidade das crianças como para o seu sucesso na escola e na vida.
Notas:
[1] Brougère, G. (1998). “A Criança e a Cultura Lúdica”. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo V24 nº2. 103-116
[2] [4] Sutton-Smith, B. [(2001) 1997]. The ambiguity of play. London: Harvard University Press.
[3] Araújo, M. J. (2009). Crianças Ocupadas. Como algumas opções erradas estão a prejudicar os nossos filhos. Lisboa: Prime Books.