Dimensão analítica: Desporto
Título do artigo: O lugar do corpo na universidade: saúde e exercício nas sociedades de risco (III)
Autor: Rui Machado Gomes
Filiação institucional: Universidade de Coimbra
E-mail: ramgomes@gmail.com
Palavras-chave: corpo, desporto, saúde
Nos anos mais recentes a esfera pública ancorou-se no paradoxo da segurança-risco. A segurança é um sintoma do biopoder que nos acompanha desde o séc. XVII. Fazendo da morte um objecto de apreensão, o poder disciplinar preocupou-se com a sobrevivência, com o prolongamento da vida e com a protecção da higiene pública. Filiado em novas tecnologias políticas do corpo, o biopoder estendeu a sua actuação ao conjunto da população em questões como a natalidade, a fecundidade, a velhice e o controlo das endemias. Foucault, ao traçar o diagrama do biopoder no primeiro volume da História da Sexualidade, usa uma dupla perspectiva no modo de ver o poder sobre a vida. Por um lado, o biopoder visa maximizar as forças anatómicas do corpo através da sua integração em sistemas eficientes; por outro lado, a biopolítica da população requer formas de regulação e de controlo sobre as enfermidades, a mortalidade e a longevidade. Nas sociedades contemporâneas, esta distinção entre os dois pólos do biopoder que podemos designar como disciplina e regulação foi superada. Hoje em dia o tema da segurança percorre transversalmente esferas muito diversas da vida, mas todas elas remetendo para a antecipação, para a prevenção e para a auto-responsabilização do que nos acontece na vida de todos os dias. Do lado da segurança apresentam-se soluções que prometem a saúde física e psicológica com informações mais ou menos especializadas sobre o modo de reduzir os riscos corporais. Do lado do risco são cada vez maiores as ofertas de estilos de vida que promovem o álcool, os estimulantes, as drogas de lazer e a vida sedentária. Muitas vezes o risco é procurado deliberadamente através das actividades de aventura na natureza selvagem, o recurso às tecnologias motorizadas, às actividades físicas intensas e radicais ou aos concursos de sobrevivência em condições extremas.
Em qualquer caso, a noção de risco tornou-se central numa sociedade somatizada caracterizada pelo valor que a noção de preservação do corpo assume no espaço público. É neste contexto profundamente reflexivo que os corpos são sujeitos a um grau sem precedentes de monitorização dos riscos. Companhias de seguros, especialistas e políticos introduzem o tema securitário em domínios cada vez mais vastos da vida: medidas da pressão arterial, do colesterol, dos índices de massa corporal, das doenças geneticamente transmissíveis, dos hábitos tabágicos, das doenças familiares e de outro conjunto de parâmetros de avaliação dos riscos potenciais são usados como formas de controlo actuarial ou, simplesmente, como indicadores que devem orientar as políticas de prevenção primária e os programas de educação para a saúde dos leigos. As estatísticas encarregam-se de alargar os efeitos destas políticas de controlo: riscos rodoviários, acidentes de trabalho, riscos domésticos, acidentes infantis, incidência dos acidentes vasculares cerebrais ou do cancro são sujeitos a estudos estatísticos que fixam limiares e populações em risco de modo a antecipar e identificar os «locais» e os grupos de risco tendo em conta valores médios e normas. As populações no seu conjunto são sujeitas a um controlo administrativo, mas, simultaneamente, as estatísticas introduzem na reflexividade social um pensamento individualizado sobre o risco e a responsabilidade no seu controlo. A prevenção e a redução dos riscos passam a ser da responsabilidade de cada um.
O vocabulário usado pelos especialistas e pela administração estatal cria, também nos pensamentos mais privados, uma mentalidade de vigilância e decifração das experiências de cada um, desenvolvendo uma sensibilidade terapêutica. Nestas circunstâncias, o que se come, o exercício que se faz, a monitorização corporal que se segue, a sexualidade que se mantém corresponderia a uma escolha pessoal que, supostamente, constrói a narrativa de cada um. Por conseguinte, a doença passa a estar associada com a insuficiente vontade de cuidar de si. Não fazer exercício, não ser capaz de deixar de fumar, não comer de forma adequada e moderada são vividos enquanto défices volitivos e morais que responsabilizam o próprio pelo seu bem-estar.
Nesta nova ordem discursiva a relação entre direitos do cidadão e deveres do Estado é deslocada. Caberia ao Estado regular a produção e a difusão de informações devidamente certificadas por especialistas em saúde pública e ao cidadão o dever de incorporá-las no seu quotidiano. Deste modo, o controlo dos corpos não se dá por acção directa de uma entidade omnipresente que confina os desviantes e proíbe comportamentos, mas pela expansão de uma retórica político-sanitária que oferece modelos de vida saudável, induz à prática de certas formas de estar e responsabiliza o sujeito pela administração do seu próprio bem-estar. Trata-se de uma forma específica de governo da população centrada numa rede de instituições bem articulada que envolve organizações não-governamentais, instituições científicas e meios de comunicação e não mais a exclusividade estatal na responsabilidade directa pela protecção da saúde pública. E aqui se pressente uma outra razão, esta económica, para a lógica dos estilos de vida saudável se ter tornado tão aceite nos anos mais recentes. Os receios de que os sistemas nacionais de saúde não sejam economicamente viáveis inspiraram muitas campanhas que põem em primeiro plano a prevenção e educação através de mudanças de estilo de vida, tais como o aumento do exercício físico e o abandono de maus hábitos como o sedentarismo ou o tabagismo.
Bem-estar e saúde passaram a ser os operadores linguísticos que asseguram a justificação do exercício físico durante os tempos livres e a utilização da aparência e condição física como força produtiva do trabalhador. Interpenetram-se assim a estúpida compulsão do trabalho, de que falava Marx, com a estúpida compulsão do consumo de que fala Baudrillard. Enquanto no passado o trabalhador procurava no seu tempo livre o contrário do tempo de trabalho, a contemporaneidade assistiu ao nascimento de um tempo quotidiano completamente penetrado pela reprodução alargada da vida humana. A autogestão da saúde colocou o sujeito diante da exigência de gerir a economia do seu próprio corpo.