Dança Antiga na atualidade: da dimensão social ao estudo científico

Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos

Título do artigo: Dança Antiga na atualidade: da dimensão social ao estudo científico

Autora: Catarina Costa e Silva

Filiação institucional: FCT (2021.08586.BD), CECH_Universidade de Coimbra, ESMAE_P.Porto

E-mail: catarinacostaesilva@gmail.com / www.portingaloise.pt

Palavras-chave: história da dança, dança antiga, coreologia histórica.

O movimento da Nouvelle Histoire desenvolvido pela terceira geração da École des Annalles, mais precisamente pela mão de historiadores como Jacques Le Goff, Georges Duby ou Pierre Nora, ampliou o campo epistemológico da história, considerando a história das mentalidades. Considerando ideias e visões do mundo produzidas em determinado contexto histórico, foram igualmente contempladas representações e observados hábitos, o que levou, já na última década do século XX, ao desenvolvimento dos estudos culturais. Desde então, o estudo de manifestações artísticas e socioculturais abrange objetos das artes plásticas, da musicologia ou da coreologia como elementos importantes na definição de um determinado contexto histórico.

Foi precisamente a par do desenvolvimento desta Nova História que despontou um interesse crescente entre músicos e bailarinos pelo estudo das designadas Música Antiga e Dança Antiga. Esta designação, embora por vezes pouco consensual, tende a situar este período “antigo” desde a produção dos primeiros registos escritos (de música ou de dança) até ao final do Antigo Regime. Estes registos sendo, por exemplo, partituras de polifonia do renascimento, ou coreografias do período barroco, promoveram um interesse pela execução historicamente informada, ou seja, por uma prática inspirada por documentos orientadores coevos. Os tratados, as coletâneas, as descrições (por exemplo, em crónicas, diários ou cartas) assim como a iconografia dessas épocas começaram a ser material estudado e observado por estes investigadores-práticos para definirem a sua execução/interpretação. Por exemplo: no caso da música, passaram a ser utilizados instrumentos de época com as características de então (materiais, técnicas de execução); no caso da dança, passaram a ser consideradas regras de cortesia que emolduravam a prática da dança ou, por outro lado, foi estudada com maior rigor a indumentária, como elemento cabal na definição do movimento.

A musicologia ou a coreologia históricas afirmaram-se assim cientificamente na Europa, desde a década de 60 do século XX, a par do desenvolvimento da etnomusicologia e da etnocoreologia. E este interesse pelo passado da prática da música e da dança – nomeadamente, das práticas registadas em documentos escritos – animou diferentes públicos, do mais especializado ao amador. Curiosamente, este interesse tem aumentado no século atual em Portugal verificando-se uma maior adesão em formações ou eventos relacionados com a prática conjunta da música ou dança. Para isso contribuíram fatores tão díspares – no entanto, confluentes – como o importante e consequente investimento no ensino artístico desde o final da década de 80 até à proliferação de associações, grupos etnográficos, orfeões, coros, bandas filarmónicas ou mesmo universidades seniores, onde a prática da música e da dança coletivas se democratizou.

O caso específico da prática da dança antiga ecoa igualmente em eventos revisionistas como as feiras temáticas, sejam medievais, quinhentistas, barrocas, do tempo das invasões francesas, ou mesmo da antiguidade romana, eventos de representação muito pouco historicamente informada. Neste caso, o pretexto é turístico, normalmente impulsionado pelas autarquias como meio de revitalizar os sítios históricos assim como os produtos regionais. Particularmente expressivos no nosso país desde o início deste século, estes eventos imitam outros que já se realizavam, por exemplo, em França ou em Itália, com o mesmo objetivo económico e comercial. A dimensão social é igualmente importante desenvolvendo-se uma atitude identitária das populações locais que assim parecem valorizar mais a sua região e os seus produtos. Mas a dimensão histórica é, no mínimo, superficial. No caso específico da dança que acontece nestes eventos, esta é uma atividade decorativa ou ilustrativa, quase nunca fidedigna às orientações iconográficas ou tratadísticas da época. A própria indumentária é vestida por corpos que se disfarçam por umas horas, contribuindo para a definição de uma fantasia coletiva em que não se estranha que, em determinado momento de pausa, uma figurante vestida de dama da corte fume o seu cigarro ou um nobre cavaleiro fale ao telemóvel.

Muito embora uma das riquezas da contemporaneidade seja permitir muitas e distintas formas de olhar e representar o passado, urge olhá-lo e estudá-lo cientificamente a partir de um largo conjunto de fontes. Fontes que, mais do que promover uma “invenção” do passado à nossa semelhança, nos informam sobre as ideias, os pensamentos, os hábitos de corpos que, embora, anatomicamente iguais aos de hoje, viviam de forma distinta: comiam, dormiam, relacionavam-se, moviam-se de forma distinta.

É impossível reproduzir o passado, nomeadamente, a forma exata como corpos do século XV dançavam uma bassedanse na corte de Borgonha ou como, no século XVIII, se dançava um minueto na Assembleia das Nações em Lisboa. E, muito embora, o interesse de um público generalizado seja recriar ou mesmo entrar na referida “fantasia coletiva” de participar num baile cortesão, esta vivência nunca será completamente verdadeira. Esta participação será sempre como integrar uma mascarada ou uma parada de Carnaval que, aliás, e referindo o famoso Carnaval carioca atual, inclui elementos do período barroco como seja a indumentária dos porta-bandeira.

Esta deriva dos estudos da dança antiga, este desvio alimentado por um público sedento de fantasia histórica muito nos afasta do efetivo conhecimento científico de determinada época. Sendo muito mais apetecível a fantasia – e, acima de tudo, muito mais lucrativa – esta contribui para a opacidade, o equívoco histórico, mas e acima de tudo, desvia-nos do elemento mais interessante deste estudo especializado: considerar as informações contidas em fontes coreológicas como dados fundamentais para conhecer melhor a relação que em determinada época se tinha com o próprio corpo, com o corpo do outro, com o movimento, com o gesto,… Nas fontes coreológicas encontramos informações tão diferentes como orientações sobre postura do corpo, significação do gesto, utilização de objetos pessoais (espada, leque, lenço, chapéu); sobre a relação de um corpo face a outro, conversando, andando, dançando,…; sobre hábitos de higiene e saúde; assim como a necessária definição das qualidades imprescindíveis a um bom executante, na sua relação com o tempo e o espaço.

Toleremos a deriva “histórica” dos eventos revisionistas enquanto fenómeno social, potencialmente promotor de um interesse individual ou coletivo por um estudo mais profundo (e criterioso) da história, mas, reclamemos a pertinência do estudo científico e sério da dança antiga como um caminho importante para compreendermos a história do corpo, do movimento e das relações socais.

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