Corpo, doença e identidade: breves notas sociológicas

Dimensão analítica: Saúde, Estilos e Condições de Vida

Título do artigo: Corpo, doença e identidade: breves notas sociológicas

Autora: Daniela Almeida de Medeiros de Sousa Soares

Filiação institucional: CICS.NOVA.UAc | CICS.UAc; Universidade dos Açores (FCSH-UAc)

E-mail: daniela.am.soares@uac.pt

Palavras-chave: Corpo doente, corpo múltiplo, identidade.

O corpo é um elemento central na construção da identidade dos indivíduos sendo, para tal, fundamental analisar a influência que as transformações do corpo, inerentes ao evoluir da doença, provocam nos contextos de interação e, consequentemente, na identidade dos indivíduos.

Como refere Philippe Corcuff “o caráter plural de cada indivíduo, dos seus desejos, dos seus interesses, dos recursos cognitivos e afetivos aos quais faz apelo e das suas identidades, suscitou nestes últimos anos uma certa curiosidade no espaço das ciências sociais; a dupla questão da continuidade no tempo e da unidade no espaço do indivíduo tornou-se objeto de questionamentos. Os indivíduos são levados a mover-se no seio de múltiplos palcos da vida quotidiana, através de lógicas de ação diversas, confrontados com experiências plurais, mobilizando, assim, aspetos diferentes, por vezes contraditórios, da sua pessoa” [1].

Um dos fenómenos sociais identificadores do século XX é a crescente valorização do corpo e da preocupação com a saúde, a forma e a aparência, evidenciando-se uma “civilização do corpo” na qual existe uma tendência para que este se torne progressivamente central na construção da identidade da pessoa moderna [2].

A perspetiva de Goffman sobre o corpo é fundamental para a compreensão do modo como os corpos interferem não só nas relações interindividuais como nas relações sociais mais alargadas. A assunção do papel de doente, a identidade e a (re)conversão identitária e o processo de estigmatização familiar [3], apelam a um questionamento sobre os modos como portadores, doentes e familiares gerem a (in)visibilidade sintomatológica e o sofrimento à medida que os sintomas se manifestam, transformando os corpos que são tocados pela enfermidade [4]. O corpo demonstra, em grande medida, a nossa identidade profunda, estando sujeito a um sistema de representações.

O corpo enquanto signo de pertença social é um instrumento de inserção, mas é igualmente objeto de constrangimentos sociais de natureza normativa. No entanto, apesar da uniformização, além de social e biológico, o corpo revela uma dimensão pessoal e individual intransmissível, presente na biografia de cada um ao longo da vida, manifestando, deste modo, uma individualidade específica.

O conceito de corpo “múltiplo” [5] permite identificar a capacidade que o corpo tem de experimentar vários desempenhos, devidamente situados, que expressam racionalidades práticas distintas. Não nos esqueçamos que o corpo não está limitado a uma forma física – corpo-objeto construído pela medicina – é também um ator social – o corpo vivido, representando o modo de (re)agir face às múltiplas inscrições acumuladas ao longo da vida que estruturam a biografia como pessoa –, dando lugar a diversas produções de subjetividade.

Também David Le Breton mostra essa abrangência do objeto quando refere que “viver consiste em reduzir continuamente o mundo ao corpo, através do simbólico que este encarna. A existência do homem é corporal. E a análise social e cultural de que é objeto, as imagens que falam sobre a sua dimensão oculta, os valores que o distinguem, falam-nos também da pessoa e das variações que a sua definição e os seus modos de experiência apresentam em diferentes estruturas sociais. Por estar no centro da ação individual e coletiva, no centro do simbolismo social, o corpo é um elemento de grande alcance para uma análise que pretenda uma melhor apreensão do presente” [6]. Para o autor, a posição que o corpo ocupa no quadro simbólico de determinada sociedade é conferido pelas representações sociais que se lhe aplicam. São as representações sociais que “materializam”, que dão nome às diferentes partes do corpo bem como às diversas funções que estas realizam, mostrando as relações existentes entre elas e penetrando, naquilo a que designa por “interior invisível do corpo”, plantando nesse interior imagens concretas do corpo. No fundo, são as representações sociais que vão outorgar a posição do corpo no seu meio envolvente e este é olhado através da sua dimensão simbólica.

Os saberes e as representações sobre o corpo são fruto de determinadas condicionantes temporais e espaciais, de determinada forma de ver o mundo, em determinado momento. O corpo resulta, assim, de uma determinada construção simbólica vigente num determinado contexto, ganha forma não por si próprio, mas pelas representações sociais dominantes.

À luz da sociologia, o corpo apresenta-se como resultado do processo de produção social. Objeto de conhecimento ou de discursos práticos, o corpo desperta a curiosidade sociológica, uma vez que, ao permitir uma análise científica da interação entre a construção e a representação do corpo, permite a apreensão do corpo enquanto resultado do social. O corpo é, desta forma, um corpo real enquadrado num determinado tempo e num determinado espaço, espelhando o conjunto imenso das representações simbólicas em torno da corporeidade humana.

Notas

[1] Corcuff, P. (1997). As Novas Sociologias (p.113), Sintra: VRAL.

[2] Crespo, J. (1990). A História do Corpo, Lisboa: Difel.

[3] Goffman, E. (1988). Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, Rio de Janeiro: Editora Guanabara.

[4] Soares, D. (2016). Dilemas e Tensões entre Atores vinculados aos “mundos” da Doença de Machado-Joseph: contrastes e afinidades na (in)visibilidade pública da condição de doente, Doutoramento em Sociologia (especialização em Educação, Cultura e Ciência), Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

5] Mol, A (2002). The Body Multiple: Ontology in Medical Practice, Durham: Duke University Press.

[6] Le Breton, D. (1995). Antropología del cuerpo y modernidad (p.7), Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión.

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