“Somos fado, bacalhau, caldo verde”… ou a identidade cultural portuguesa

Edição: 3ª Série de 2023 (dezembro 2023)

Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos

Título do artigo: “Somos fado, bacalhau, caldo verde”… ou a identidade cultural portuguesa

Autor: Fernando Manuel Rocha da Cruz

Filiação institucional: Universidade Federal do Pará, Campus de Abaetetuba (Brasil)

E-mail: fmrcruz@gmail.com

Palavras-chave: Identidade, globalização, memória.

Na sua visita oficial ao Canadá, o Presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, dedicou o dia 16 de setembro de 2023, às comunidades emigrantes portuguesas. No seu discurso (em inglês), na cidade de Toronto, atentou relativamente aos portugueses que estes são “fado, […] bacalhau, […] caldo verde, […] cozido à portuguesa, […] o vira e o corridinho e o fandango […] [E] Cristiano Ronaldo” [1]. Mas o que é ser português?

Antes de nos debruçarmos sobre a questão identitária e cultural dos portugueses, importa citar um outro exemplo, a partir de uma opereta apresentada pela primeira vez na cidade da Póvoa de Varzim, em 1946. Nesta, destacamos três estrofes onde dois personagens dialogam sobre a questão identitária.

“Diz-se até que D. LUÍS,

Um rei também marinheiro,

Lhe perguntou uma vez:

“Ouve lá, és Português?

Não, meu SENHOR, sou POVEIRO!”

 .

Finalmente, o nativismo,

Está no Brasil a mandar

E surge um dilema, então;

Se aqui queres ganhar o pão,

A PÁTRIA tens de trocar!

 .

Responde logo o POVEIRO,

Com decidida altivez:

“Que importa que viva mal?

Eu nasci em Portugal,

Hei-de morrer PORTUGUÊS!”” [2]

 

Para Hall [3], a identidade uniforme e invariável é inexistente, uma vez que são múltiplos os sistemas de significação e representação cultural. Desse modo, as sociedades modernas têm como características essenciais a mudança constante, célere e contínua. A globalização e as novas tecnologias de informação e comunicação são duas das principais causas. Neste aspecto, Giddens [4] distingue estas sociedades das tradicionais. Nestas últimas, o passado e os símbolos são apreciados por incluir e eternizar a experiência de gerações. Daí que a tradição se constitua, por conseguinte, como meio que dá sentido e continuidade ao espaço e ao tempo.

A identidade singular, pensada e imaginada através de muitas gerações mostra-se vulnerável e precária face aos medos e ansiedades individuais. Por conseguinte, a insegurança coarta a liberdade e o sacrifício desta última é que permite reduzir a primeira. Como bem refere Bauman [5], “segurança sem liberdade equivale a escravidão”.

Não é, por isso, o passado que explica a identidade cultural, uma vez que ela se constitui por mudança, geração a geração, bem como, pelos fluxos de entrada e saída de indivíduos e pelos contatos com outras pessoas e populações ou não fossemos tradicionalmente um país de emigrantes. Porém, isso não impediu que, quer políticos quer a própria população portuguesa, fossem influenciados pelas vagas migratórias.

A crise de identidade mais não é mais do que um erróneo pressuposto da unidade no passado como se tivesse existido alguma vez. Não há, por isso, declínio ou fragmentação do indivíduo moderno [3]. A identidade enquanto resultado da produção humana e cultural beneficiou sempre de mudanças culturais nas suas estruturas e quadros de referência. A aparente estabilidade no mundo social foi sendo conseguida através de um controlo social que impunha preconceitos e referências de estilo às suas populações ou apontados às comunidades locais ou aos indivíduos desajustados relativamente aos padrões ou normas idealizadas.

Se as identidades regionais ou locais existem, estas podem ser mais fortes do que as nacionais (ou mesmo transnacionais como a europeia). Quanto mais isolada é a comunidade mais os laços serão próximos e semelhantes, mas não únicos. Essa é também a razão pela qual discordamos da posição do presidente da República enunciada no primeiro parágrafo deste artigo.

Nem todos os portugueses e portuguesas gostam de fado, bacalhau, caldo verde, cozido à portuguesa, vira, corridinho ou fandango… nem Cristiano Ronaldo é consensual. Todos são representações idealizadas que caracterizam a identidade portuguesa. Porém, é com a multiplicidade ou a complexidade que nos identificamos e não com a sua singularidade ou unicidade. Igualmente, não são exclusivas da cultura portuguesa pois ao longo dos tempos as mesmas são partilhadas por outras culturas ou incorporadas nas mesmas.

Por último, destacamos ainda o artigo de Miguel Esteves Cardoso [6], onde o autor qualifica que:

“A sopa era a melhor coisa que fazíamos. Nestas coisas das terras onde se come melhor e pior, não é coincidência acharmos sempre que se come melhor na nossa. […] Mas Portugal mudou. Ficou mais parecido com esses outros países menos sopeiros, para bem e para mal.”

O espaço enquanto lugar de memórias [7] permite a vivência e a reativação das mesmas quer individuais, quer coletivas. A mobilidade condiciona o lugar antropológico [8] e Portugal promove cada vez mais, interna e externamente, a mobilidade no território nacional através da promoção das festas populares, feiras nacionais e internacionais, festivais com músicos nacionais e internacionais… em suma, o seu património cultural, empresarial e tecnológico. Mas também se assume como palco dessas práticas internacionais em território nacional.

Somos assim o resultado de uma complexidade de traços culturais que assumimos quer em Portugal, quer no estrangeiro. Seres aculturados através da memória e da práxis de uma existência real ou representacional.

Referências bibliográficas

[1] Lusa/DN (2023). Marcelo: Somos fado, somos bacalhau, somos Cristiano Ronaldo, Jornal de Notícias, Disponível em URL [Consult. 20 Out 2023]:  https://www.dn.pt/politica/marcelo-somos-fado-somos-bacalhau-somos-cristiano-ronaldo–17037700.html

[2] Sá, J. (1946). Poveiros: opereta em 3 atos.

[3] Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A.

[4] Giddens, A. (2002). Modernidade e identidade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[5] Bauman, Z. (2003). Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[6] Cardoso, M. E. (2023). Será que ainda vamos a tempo de devolver a sopa à nossa vida? Fugas. Público, n.º 12.226, 21 de outubro de 2023.

[7] Cruz, F. M. R. (2011), A tematização nos espaços públicos: Estudo de caso nas cidades de Porto, Vila Nova de Gaia e Barcelona. Uma análise sobre a qualidade e estrutura dos espaços públicos (tese de doutoramento), Porto: FLUP.

[8] Augé, M. (2009), Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Lisboa: 90 Graus.

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