Saúde e sociedade: reflexões breves sobre a polarização epistemológica entre medicina e sociologia

Edição: 3ª Série de 2023 (dezembro 2023)

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Saúde e sociedade: reflexões breves sobre a polarização epistemológica entre medicina e sociologia

Autor: Hélder Raposo

Filiação institucional: Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa (ESTeSL-IPL)

E-mail: helder.raposo@estesl.ipl.pt

Palavras-chave: Medicina, Sociologia, construtivismo.

As abordagens clássicas da sociologia médica e da saúde permitiram pensar a saúde e a doença para além da sua realidade biofísica, o que tornou possível erigir um investimento analítico em torno do estudo das dimensões sociais destas realidades. O essencial desse investimento condensou-se na bem conhecida distinção entre disease (enquanto condição clínica) e illness (enquanto experiência socialmente moldada pelos contextos), mas também no estudo da perspetiva médica sobre a doença.

Desde a sua emergência enquanto subdisciplina, existe, portanto, uma bem estabelecida “divisão do trabalho” entre a Sociologia e Medicina, divisão essa que é responsável por uma segmentação analítica que dificilmente se articula ou dialoga, contribuindo, desta forma, para abordagens não apenas distintivas entre si, mas tendencialmente cativas de uma insularidade teórica e epistemológica que dificulta um entendimento recíproco. Essa difícil coalescência de perspetivas é, no que à sociologia diz respeito, agravada pela sedimentação de formas radicalizadas de construtivismo e, por consequência, por uma orientação epistemológica relativista e por uma orientação ontológica de tipo anti-realista [1].

O impacto do construtivismo na modulação de um olhar teórico e epistemológico específico no âmbito da sociologia médica constitui-se, deste modo, como um dos principais fatores que tem estado na base do desenvolvimento de posicionamentos agonísticos da sociologia relativamente à medicina. Isto porque num certo afã de problematização e de desconstrução crítica dos limites dos pressupostos do chamado modelo biomédico, a denúncia normativa da hubris da medicina moderna, acaba por contribuir para a redução analítica da própria medicina a uma caricatura. Daqui tende a resultar o postulado de que a medicina é sinónimo do paradigma biomédico, o que abre espaço para o habitual inventário de críticas e limitações associadas ao carácter mecanicista e redutor de um olhar centrado obstinadamente no biológico, ao mesmo tempo que se consolidam generalizações interpretativas acerca do conhecimento médico [2] [3].

Construtivismo sociológico: os riscos do nomimalismo social

Importa deixar claro que o teor das abordagens construtivistas que se foi desenvolvendo na sociologia médica permitiu, de facto, pensar as doenças para além do seu pretenso estatuto de realidade física fixa. As ideias sobre as categorias de doença e as experiências que delas decorrem passaram a ser perspetivadas como fenómenos moldados por experiências sociais, tradições culturais partilhadas e por quadros mutáveis de conhecimento. Assim, em lugar de as doenças serem entendidas como objetos naturais invariáveis, o que em alternativa se passou a sustentar é o de que estas correspondem a conceitos avaliativos socialmente construídos, na medida em que as mesmas podem assumir uma pluralidade de significações sociais e culturais, significações essas que podem ser (e frequentemente são) variáveis no tempo e no espaço.

O alcance desta abordagem construtivista não se circunscreveu apenas ao entendimento das significações socioculturais subjacentes à doença e à análise da variação das suas experiências. Este tipo de análise foi também extensível ao próprio conhecimento científico, na medida em que, por um lado, as próprias conceções profissionais e as categorias de conhecimento médico passaram a ser equacionadas como sistemas simbólicos socialmente situados, e, por outro, porque se foi tornando cada vez mais difícil desarticular estas duas dimensões (experiência da doença e conhecimento médico), uma vez que a forma de gerir e de dar sentido à doença é feita no quadro de entendimentos biomédicos que ao conferirem “existência” a determinadas condições, organizam as experiências em categorias diagnósticas específicas [4] [5] .

O reconhecimento destes méritos de problematização torna-se, no entanto, mais discutível e paradoxal quando o desenvolvimento destes questionamentos críticos evolui para visões mais radicalmente relativistas e, portanto, mais ativamente empenhadas em recusar qualquer ideia de autonomia do mundo natural. Nesta aceção, o que tende a prevalecer é a negação da própria realidade ontológica do mundo natural, donde resulta como postulado básico, quando aplicado ao conhecimento médico, que as categorias de doença não correspondem necessariamente à descoberta de fenómenos naturais. Estas são, pelo contrário, concebidas ora como apenas o resultado de consensos científicos essenciais para a produção de conhecimento legítimo, ora (na sua versão mais relativista) como a expressão de fabricações e constructos discursivos orientados para a disseminação de um poder disciplinar estruturalmente enraizado no mundo moderno.

Nesta medida, e sendo certo que existem várias e diferentes versões de construtivismo no âmbito da sociologia médica [4], os principais paradoxos que o nominalismo mais radical pode suscitar passam tanto pela negação da estrutura material do mundo, como pela própria (im)possibilidade de o conhecer factualmente. No primeiro caso, o principal desafio que se coloca à análise passa pela necessidade de superação de discussões assentes em visões binárias (realidade versus interpretações da realidade a partir das ideias) uma vez que os fenómenos (neste caso as doenças) podem ser simultaneamente reais e socialmente construídos [5] [6]. No segundo caso, o desafio mais exigente passa por perceber que quando o próprio estatuto da racionalidade como forma de conhecer a realidade fica posto em questão, o que daí pode resultar é um paradoxo niilista de auto-refutação das próprias abordagens construtivistas enquanto formas alternativas de conhecimento [2] [7].

Notas finais

Sob este ponto de vista, e considerando o ascendente do construtivismo na problematização desenvolvida no quadro da sociologia médica, podemos então argumentar que demonstrar o carácter mutável, contingente e problemático da medicina não é o mesmo que demonstrar a sua dispensabilidade, nem tão pouco esse exercício crítico nos deve levar a adotar um olhar apriorístico sobre a natureza do conhecimento médico e do alcance da sua ação prática na vida social humana. A recusa da narrativa de progresso a partir da análise das diferentes condições de possibilidade com o objetivo de mostrar o carácter contingente do conhecimento, ou a constatação de que as implicações da intervenção médica são efetivamente amplas e denotativas de uma capacidade de redefinição de condições humanas, são postulados que mais do que se constituírem como um fim em si mesmo, devem, isso sim, ser assumidos como pontos de partida importantes para melhor explorar as dinâmicas complexas de transformação do papel da Medicina na sociedade.

Em suma, qualquer esforço que implique ir para além da perpetuação da caricatura em torno do “modelo biomédico”, ao mesmo tempo que permita reconhecer a parcialidade de todas as formas de conhecimento e a heterogeneidade das perspetivas disciplinares é, em si mesmo, um contributo relevante para mitigar equívocos e mistificações recíprocas. Se as diferentes formas de conhecimento sobre a saúde e a doença forem vistas com suspeição, as virtudes do diálogo interdisciplinar tornam-se inviáveis.

Notas

[1] Cunha, D.S. & Raposo, H. (2022), A New Time of Reckoning, a Time for New Reckoning: Views on Health and Society, Tensions between Medicine and the Social Sciences, and the Process of Medicalization. Societies 12, no. 4: 119.

[2] Williams, S. (2001). Sociological imperialism and the profession of medicine revisited: where are we now?, Sociology of Health & Illness, Vol.23, Nº2: 135-158.

[3] Collyer, F. (2008). Max Weber, historiography, medical knowledge, and the formation of medicine. Electronic Journal of Sociology, 1-15.

[4] Brown, P. (1995). Naming and framing: the social construction of diagnosis and illness, Journal of Health and Social Behavior, (Extra Issue): 34-52.

[5] Barker, K. (2010). The social construction of Illness. Medicalization and contested illness. In Chloe Bird, Peter Conrad, Allen Fremont, Stefan Timmermans (Eds.), Handbook of Medical Sociology, Nashville: Vanderbilt University Press, pp. 147-162.

[6] Hacking, I. (1999). The social construction of what?. London: Harvard University Press.

[7] Bury, M. (1986). Social constructionism and the development of medical sociology. Sociology of Health & Illness, Vol.8, Nº2: 137-169.

.

.

Esta entrada foi publicada em Saúde e Condições e Estilos de vida com as tags , , . ligação permanente.