Edição: 3ª Série de 2023 (dezembro 2023)
Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: O que nos dizem as manifestações dos táxis? Reflexões em torno de um objeto sociológico
Autor: Guilherme Costa, Manuel Garcia-Ruiz
Filiação institucional: 1 2 ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL); 2 CIES-Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
E-mail: guilherme_teixeira_costa@iscte-iul.pt; manuel_ruiz@iscte-iul.pt; urbiteit@gmail.com
Palavras-chave: Táxi, TVDE, Motoristas.
A rivalidade entre as cooperativas de táxis e as empresas do capitalismo de plataforma, em particular com a Uber, tem sido objeto de vários debates e discussões em diversas cidades em todo o mundo. Desde a chegada da Uber a Portugal, no ano de 2014, os motoristas, associações e cooperativas de táxis têm vindo a argumentar que a plataforma representa uma competição desonesta. A competição pelo mercado de transporte de passageiros foi in crescendo, gerando um mal-estar profundo nos taxistas tradicionais portugueses como podemos ver através do número de manifestações que têm vindo a ocorrer desde 2015 [1;2].
A primeira manifestação em Lisboa, Porto e Faro, realizou-se em setembro de 2015 e contou com mais de 3.500 manifestantes, maioritariamente motoristas de táxi [3]. A segunda grande manifestação ocorreu em abril de 2016, fortemente alicerçada à ausência de alteração da legislação das plataformas eletrónicas de transporte. A insatisfação face à sua posição laboral levou a que se formassem quilómetros de filas em várias regiões do país. Uma terceira manifestação aconteceu em outubro de 2016, seguida da promessa do Ministro do Ambiente João Fernandes de que seria forjada uma lei para regular as plataformas digitais até ao final do mesmo ano, a qual (Lei 45/2018) só chegaria dois anos mais tarde. A última grande manifestação ocorreu em setembro de 2018, acompanhada do #SomosTáxi, cristalizando o movimento social nas principais artérias da cidade.
Essas manifestações detinham por base dois argumentos principais. O primeiro, por certo dentro da ordem legal, invocava a existência de uma “concorrência desleal”, uma vez que os motoristas das plataformas digitais não necessitavam de cumprir as mesmas regulamentações e exigências que os seus colegas taxistas. O segundo, por sua vez, emergia do receio de que a Uber poderia estar a retirar uma fatia significativa do mercado de trabalho dos motoristas de táxi. Tratava-se, pois, de uma luta pela subsistência.
No entanto, esta oposição entre um eles (plataformas) e um nós (táxi), incorpora em si mais semelhanças do que o olhar consegue percecionar de relance. Se, por um lado, as manifestações revelaram diferenças significativas a nível da legislação aplicada, promovendo a sua alteração; por outro lado, demonstram a fragilidade estrutural sobre a qual os táxis operam no seu quotidiano. Os taxistas, colocados frente-a-frente com motoristas das plataformas, começam desde logo com um relativo prejuízo, tratando-se de um mercado de trabalho “fechado de partida” [4;5] e altamente regulado. Recordamos que obter uma licença profissional é um desafio para muitos aspirantes à profissão devido aos altos custos iniciais, limitados pelos contingentes de âmbito municipal. Muitos vêm-se obrigados a comprar licenças de taxistas anteriores, com valores muito elevados (fig. 1). Esta situação dificulta significativamente o acesso à profissão, sendo frequente encontrar à venda estas licencias nas plataformas de venda de segunda mão.
Figura 1 – Venda de licenças de táxi em Lisboa na plataforma OLX
Fonte: Olx.pt, acedido a 16 de Dezembro de 2023 [5].
O acesso ao trabalho das plataformas é percebido como mais fácil por parte dos taxistas, que descrevem uma assimetria nos requerimentos necessários para operar, pois os condutores de plataformas não são sujeitos a uma fiscalização tão exaustiva nem alvo de revisões periódicas. Esta “crise” de entrada no ativo, por certo ligada à imagem de uma profissão que acarreta consigo um futuro incerto e ameaçado, destabiliza as possibilidades dos motoristas de táxi se lançarem para a atividade por conta própria.
As forças motrizes das manifestações mencionadas revelam o processo de degradação das condições de trabalho dos motoristas de táxi, proletarizando uma atividade que até 2014 detinha as garantias coletivas do transporte público de passageiros. Ainda, deve ficar registado que uma grande parte dos motoristas de táxi em Lisboa (em períodos pré-pandemia) detinham idades superiores a 65 anos, funcionando muitas vezes como um emprego que servia de complemento às baixas reformas. Tratava-se, pois, de uma “profissão de refúgio” [5], onde os seus membros procuravam estabelecer uma relação de profissionalização pelo reconhecimento de um determinado “saber fazer”, e que se viu ameaçada pela chegada das plataformas com os seus motoristas mais novos e dispostos a trabalhar mais horas. Ao adicionar as dificuldades do recrutamento à destabilização do processo de acesso à independência financeira, as plataformas representavam mais um perigo económico, colocando sobre xeque muitos taxistas.
Esta a rivalidade entre táxis e empresas de plataforma transcende a mera disputa comercial, evidenciando questões estruturais e socioeconómicas de grande impacto no setor de transporte de passageiros: a regulação do trabalho, a flexibilização das relações laborais, a exploração económica, as lógicas extraccionistas de capital, e a distribuição desigual de recursos [6]. Para além disso, torna-se possível evidenciar a desconexão entre os utentes destes serviços, os quais procuram nas plataformas uma maior flexibilidade de veículos, de serviços, e uma garantia de serviço ao cliente que se encontra ausente na indústria do táxi, dado o imaginário coletivo dominado por homens pouco tolerantes. Os movimentos sociais acima descritos refletem, pois, uma drástica transformação no mercado de trabalho da indústria do táxi, decompondo/recompondo uma profissão que até ao ano de 2014 pode usufruir de um mínimo de segurança laboral.
Urge uma análise aprofundada acerca da indústria do táxi, revelando uma incapacidade de se adaptar face às rápidas mutações nas dinâmicas de transporte de passageiros. Isso manifesta-se de forma inequívoca na emergência e crescimento exponencial das empresas de plataforma, as quais identificaram oportunidades onde a indústria tradicional recuou. Ao longo do tempo, estas empresas têm redefinido gradualmente o panorama do transporte, absorvendo parcelas significativas do mercado. Essa mesma realidade pode ser evidenciada aquando comparados os números de motoristas TVDE com o número de motoristas de táxis. No caso dos primeiros, verificou-se um aumento significativo entre 2018 e 2023, passado de 18.265 para 69.873 motoristas [7]. Já no segundo, o aumento do número de motoristas foi mais moderado, passando de 25.699 [8] para cerca de 28.000 durante o mesmo período, como reportado por Carlos Ramos, presidente de Federação Portuguesa do Táxi em entrevista aos autores (Lisboa, 2023).
Observa-se um processo acelerado de reconversão da indústria, impulsionado pela necessidade de se ajustar às novas tecnologias. Este processo de reconversão torna-se não apenas uma resposta crucial para a sobrevivência da indústria do táxi, mas também um exemplo das profundas transformações que a era digital impõe sobre os modelos de negócio estabelecidos.
Notas:
[1] Bancaleiro, C. & Pinto, L. (2015, setembro). Taxistas ameaçam com novos protestos caso a Uber não acabe. Publico. https://www.publico.pt/2015/09/08/tecnologia/noticia/protesto-de-taxistas-contra-a-uber-decorre-sem-incidentes-1707149
[2] Expresso (2015). Lisboa inundada de táxis. As fotos da manif contra a Uber. https://expresso.pt/sociedade/2015-09-08-Lisboa-inundada-de-taxis.-As-fotos-da-manif-contra-a-Uber-1
[3] Cipriano, C. & Lusa. (2015, setembro). O vídeo e as fotografias do protesto contra a Uber. Observador. https://observador.pt/2015/09/08/taxistas/
[4] Lejeune, G. (2020). Les chauffeures de taxi parisiense: enquête sur un petit métier des transports en crise. Thèse de doctorat en Sociologie. https://www.theses.fr/2020UNIP7221
[5] Paradeise, C. (1988). Les profissions comme marchés du travail fermés. Sociologie et Sociéties, (2) : 9-21.
[6] Lejeune, G. (2018). Les chauffeurs de taxi face à Uber. Une mise à l’épreuve économique et politique. Dans Politix, (2): 107-130.
[7] Instituto da Mobilidade e dos Transportes (2023, 10 de dezembro). Número de certificados de motoristas TVDE. https://www.imtonline.pt/index.php/9-uncategorised/2290-n-certificadosmotoristastvde-2
[8] Instituto da Mobilidade e dos Transportes (2023, fevereiro). Anuário Estatístico da Mobilidade e dos Transportes.
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