Invisibilidades Urbanas – os deserdados da sorte no espaço público

Edição: 3ª Série de 2023 (dezembro 2023)

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: Invisibilidades Urbanas – os deserdados da sorte no espaço público

Autor: Mário Mesquita

Filiação institucional: FAUP/i2ADS/CITCEM

E-mail: mmesquita@arq.up.pt

Palavras-chave: Invisibilidades, Espaço Público, Sem-abrigo.

“O sem abrigo é uma pessoa que se senta num banco de um Jardim Público. Come meio frango assado com as mãos e arrota no fim. E ainda se ri por isso, Como eu fiz na minha noite de Natal. Depois, até ao final desse ano, não tive outra noite melhor do que essa.

Um sem abrigo é uma pessoa que pode ser avistada a cortar as unhas dos pés na via pública. Um sem abrigo pode ofender as outras pessoas ao tentar lavar-se numa casa de banho pública. E por isso cheira mal. Um sem abrigo aprende a roubar nos supermercados para comer. Um sem abrigo incomoda as pessoas quando, numa atitude antissocial, pede esmola nas ruas.

Os sem abrigo dormem à porta de museus e edifícios públicos da cidade, debaixo de viadutos e em prédios abandonados para se protegerem da chuva e do frio. Alguns sem abrigo falam sozinhos nas ruas porque estão a perder a sua estrutura humana e alguns a enlouquecer” (Costa, 2022).

A cidade do Porto enfrenta um rápido processo de transformação social e urbana que põe em evidência ambientes e atmosferas de desumanidades do espaço público muito preocupantes, uma dolorosa ferida social que saiu do campo da invisibilidade. Os deserdados da sorte no espaço público, a propósito do tema dos sem abrigo, aborda essa dura realidade que, apesar de atingir já números muito preocupantes, parece não ter visibilidade na esfera pública suficiente para influenciar políticas urbanas capazes de lidar com o problema.

Há uma “nova” e “outra” cidade cujo espaço colectivo nos revela, de uma forma tão dramática e impressiva, uma cidade de excluídos, uma invivível vida urbana, possibilitando-nos a percepção da crueza destes tempos de “novo normal”. Nesta era de crises cíclicas e sucessivas, pós-pandemia, as múltiplas realidades e debilidades no campo social, trivializadas já no ambiente urbano, ficaram mais expostas, revelando invisibilidades urbanas no campo social e humano, proporcionando, infelizmente, perceber os podres de uma cidade pobre que, nos dias comuns, se encontram invisibilizados pelo quotidiano acelerado da vida moderna, da contemporaneidade do rápido olvido, nessa curta distância entre a memória e o esquecimento.

É urgente, numa cidade como o Porto, marcada por diferentes e diversas condições sociais, pensar a urbanidade, factor determinante na construção das sociedades contemporâneas, através das suas “feridas” sociais. São instantes, situações efémeras, mas também continuidades e permanências, das quais frequentemente desviamos o olhar, de tão normalizadas e banalizadas pela actualidade furiosa onde a atenção não faz parte do léxico do ser urbano.

De facto, vivemos desatentos ou tão e somente consumidos pela agenda mediática autofágica que nos obsta de parar, pensar e agir e que nos atufa de mentiras ou imagens falsas que nos fazem construir uma comédia de enganos para vivermos mais tranquilos com a nossa consciência. Esse adormecimento intranquilo, sonambulismo diário que nos tolda a reação, impede-nos de pensar sem corrimão sobre o estado de crise, sobre o que, na invisibilidade, abala o mundo, e de caminharmos com os anjos bons da nossa natureza. Somos cegos que vemos uma cidade sem imagens, pois não temos tempo para perceber que esses impressivos traços de miséria são também parte da nossa cidade, são a nossa cidade e nada podemos almejar se não os confrontarmos, se apenas nos iludirmos que são momentos passageiros de um pesadelo que passará quando acordarmos.

A morte e vida da cidade passam-nos ao lado pois temos sempre destino, pois temos sempre refúgio, pois temos sempre um lar. Nesse entretanto tão precioso, a cidade vai morrendo lentamente, paradoxalmente com tanta vida e movimento. A cidade vai morrendo de pé com tanta casa sem gente. O espaço público vê morrer a sua dignidade e urbanidade com tanta gente sem casa. Quando o bulício da urbe desaparece com o adormecer do dia, esse entorno invisibilizado por tantos fluxos e movimento mostra-nos outra cidade por trás da cidade por onde nos movemos. Uma cidade feita de gente como nós, mas cuja casa é o portal, o recanto abrigado, a casa de cartão roto, a manta enrolada três vezes, aquecida por uma garrafa de vinho frio e uma ponta de cigarro apanhada do chão, uma cidade dos restos dos outros, feita de imensa imaginação para criar o possível abrigo para sobreviver. É uma cidade onde se disputa o lugar, onde se arruma cada dia um sítio para o voltar a usar, ou onde se fica cativo no espaço com medo de o perder. Uma cidade onde o contraste do dia se esbate e se funde na opacidade da noite.

O individualismo, o encerramento no privado, constitui a característica de fundo da cultura do egoísmo. No contexto de um entrincheiramento no reduto do indivíduo, é desenhada a exclusão social como núcleo do imaginário colectivo dos tempos que estamos a viver determinada pela crise do espaço público. Trata-se de uma espoliação. Um nexo cada vez mais dramático entre exclusão e desigualdades, uma exposição de pessoas que perderam a casa e, por conseguinte, a própria urbanidade, enchem a cidade como invisíveis sem que a sua opinião tenha peso e as suas acções, efeito.

Os anos da Covid – 19 deixaram cair essa cortina de névoa que transformava gente em sombras e vultos indefinidos. Entraram em cena actores que partilhavam o segundo plano, fazendo parte da paisagem, todavia camuflados por opção ou por contingência. As luzes de palco, sem protagonistas à boca de cena, passaram a iluminar o fundo.

Durante a pandemia, saía de casa cada manhã, em bicicleta, e percorria as ruas do Porto com a máquina fotográfica. Primeiro deparei-me com a cidade vazia, algo que me espantou pois nunca a havia visto assim. Com o passar dos dias e o cadente registo do cenário urbano, fui descobrindo que havia mais do que casas e ruas. Havia gente pela qual seguramente havia passado já antes, mas não me tinha apercebido. Já lá estavam e mais se foram somando com o avançar do estado de emergência e de calamidade. Aprendi a prestar atenção e fui acompanhando alguns, primeiro à distância, depois partilhando o espaço do jardim, soleira de porta ou banco onde comia para estar perto, para perceber.

Nunca mais deixei de os ver. Agora reparo neles e sinto a impotência própria de um cidadão comum. Não mais deixei de andar em bicicleta. E de fotografar.

Bibliografia:

Benot, J.G. (2023). La ciudad sin imágenes. Valencia: La Caja Books.

Ciaramelli, F. (2023). La ciudad de los excluídos. Madrid: Editorial Trotta

Costa, J. (2022). Diário de um sem-abrigo. Lisboa: Oficina do Livro

Davies, M. (2007). Ciudades muertas. Madrid: Traficantes de sueños.

Dunn, N. (2016). Dark Matters. London: Zero Books.

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